terça-feira, 8 de agosto de 2023

Psiquê e a importância dos Valores

 

Noção, Intenção e Decisão 

Nós seres humanos, temos noção do que faz bem e faz mal: Ao agredir alguém sabemos que causa dor; 

Ao difamarmos alguém com mentiras ou ofensas, sabemos que isto ofende; 

 Sabemos que paz e tranquilidade é bom. 

Isto não parece presente nos animais, ao menos não de forma nítida: Um cachorro pode brincar com um passarinho, mordendo-o, jogando-o de um lado ao outro, ferindo e matando o bichinho. O cachorro não entende nada ao fazer isso. Não estou falando de caçar aqui, este exemplo do cachorro e o passarinho eu presenciei em 2008. 

Diferente dos cachorros, tive a oportunidade de observar uma grande quantidade de seres humanos e suas relações, particularmente crianças diagnosticadas com diferentes "níveis" de transtorno do espectro autista (TEA) durante o 2º semestre de 2022 e o 1º de 2023. Não falarei dos casos mais "graves" que deixam o autista mais incapacitado, falarei das crianças que brincam e conversam entre si, a maioria com idade entre 4 e 7 anos. 

A espontaneidade destas crianças, aliadas à uma receptividade fazem com que elas encontrem facilidade na interação social: Elas praticamente não julgam umas às outras, se interessam pelo outro e improvisam brincadeiras sem receios (sem medo de parecerem ridículas etc). Além disto a maioria delas (aproximadamente 27 entre 30 crianças) perdoam o colega com quem tiveram algum conflito ou abandonam à mágoa causada por tal conflito em poucos dias. Diferente do cachorro, as crianças evitam agredir umas às outras a menos que não possuam mais recursos. Por isso é mais comum que os pacientes diagnosticados com um "nível mais grave" de TEA (vulgo autismo), agridam outros indivíduos. (nível ou gravidade não são os termos mais adequados para explicar o autismo, mas utilizo uma linguagem para os leigos aqui). 

Observei tais fatos ao realizar um estágio durante 10 meses na equipe multidisciplinar de uma clínica na cidade de São Paulo. 

 Pois bem, a noção de bem e de mal do ser humano se estende para inúmeros casos: de roubo, furto, enganação, grosseria, acolhimento, sinceridade, presentear, socorrer etc. Tal noção é mais antiga do que qualquer código de leis criado pelos seres humanos. Possivelmente existe desde que o ser humano é ser humano. 

Esta noção pode ser trabalhada ou ignorada: Se (incentivada e) colocada em prática ela torna a vida do indivíduo e daqueles com quem ele convive, predominantemente harmoniosa, pois as relações ficam mais colaborativas e mais amigáveis, portanto menos competitivas e menos conflituosas. 

Importante notar que a noção do bem e do mal é interna de cada ser humano e não é um mero instinto de sobrevivência impulsionando o indivíduo para alimentar-se, reproduzir-se, enfim para sobreviver - É uma noção mais empática do que o instinto, pois ela serve ao convívio, seja familiar, social etc. Neste convívio ela pode estabelecer relações de troca, tanto de afeto como de necessidades mais corporais, como a troca de alimentos, vestimentas etc. Desta forma, as relações podem ser feitas com mais empatia ou menos empatia - buscando entender as necessidades do outro e colocando-se em seu lugar, ou ignorando o próximo e pensando somente em si mesmo, ou cada vez mais em si mesmo. A noção vincula-se com a intenção do indivíduo que também é um "processo" interno do indivíduo. A partir daí é feita a decisão de como agir diante o próximo, numa relação qualquer, decisão que pode ser influenciada pelo meio ou não: pode vir de um gosto (algo que tenha valor ao indivíduo*) da tenra infância ou de um instinto biológico. Estes são temas da psicologia (abordados por Wundt, por exemplo) que foram sendo abandonados ou reduzidos no início do século 20: Os processos internos da psiquê como a percepção de seus próprios sentimentos e pensamentos, a noção (do bem e do mal) e os instintos são imediatos, que surgem sem a necessidade do meio. A intenção e a decisão podem ser mediatas (se influenciada pelo meio externo) ou imediatas (certamente no caso do cão instintivamente brincando com a ave, por exemplo). 

[*Este valor é um conceito estudado na psicologia analítica de Jung, por exemplo. Tal conceito de valor não refere-se a algo material em si.]

Depois, ao expor suas ideias ou expressar suas emoções, o indivíduo inicia a relação e só após a resposta obtida é que pode-se dizer que o meio passa a participar do processo. As respostas então são mediatas (dependem do meio, da troca, do diálogo etc). Porém a partir desta análise pode surgir a dúvida se a decisão é imediata ou mediata... Aqui entende-se que ela pode ser qualquer uma das duas, e, com o passar dos anos de vida, as decisões podem ficar cada vez mais mediatas, pois são progressivamente mais influenciadas (incentivadas ou criticadas) por opiniões alheias, seja de pessoas próximas ou distantes (estas últimas, de mídias etc). Com o acúmulo de experiências em vida, formam-se novos gostos, abandona-se alguns hábitos, muda-se de opinião sobre certos assuntos, consolida-se sobre outros e embora pareça impossível de não ser influenciado por tantos fatores, a noção do bem e do mal não é necessariamente encoberta por todos esses processos. Na verdade, é mais plausível que ela (a noção) continue lá e a única diferença da criança para o adulto é que ela pode ser usada um maior número de vezes no decorrer da vida. 

Essa utilização é por em prática basicamente o bem e evitar o mal. Embora os termos bem e mal possam parecer muito moralistas ou religiosos, eles são uma boa síntese (talvez pudessem ser ocasionalmente substituídos por "certo e errado"). Afinal se toda vez que formos nos referir ao bem, nós tivermos que detalhá-lo ou classificá-lo, teríamos que repetir todos os seus nomes ou manifestações: justiça, solidariedade, fraternidade, esperança, responsabilidade etc. 

Enfim, a decisão de fazer o bem é tão importante que ela está entre o íntimo de cada ser humano (a noção, intenção, a consciência, enfim a psique) e o meio, onde se coloca em prática não só através de ações individuais, como de ações coletivas, ou seja, sociais. 

A noção do bem e do mal rege todas as intenções, decisões e ações humanas. Por mais que as decisões possam ter influências do meio, esta noção sempre permanece com cada indivíduo, a menos que ele tenha uma psicopatologia/ um transtorno incapacitante que elimine-a completamente. 

Embora o tema seja complexo, como seres humanos que vivem em uma civilização, devemos tomar cuidado para não cair no relativismo, com alegações do tipo "o bem e o mal são muito subjetivos", deixando com que o mal se propague nas sociedades em geral. Tal tipo de atitude pode causar o abandono ou a deturpação de valores importantes para toda a civilização humana, tais como da justiça, da equidade, do bem-estar, da dignidade, da paz etc. 

A Necessidade dos Valores para Inteligência 

A questão da noção e dos valores mencionados há pouco tende a se tornar cada vez mais importante para todos seres humanos. Neste início do século 21, nós seres humanos estamos gradualmente mais envolvidos por um problema: A Inteligência Artificial (IA). A Inteligência Artificial passou a nos influenciar pesadamente após o aumento da utilização da internet, particularmente pelas redes sociais com seus algoritmos e com a utilização de aparelhos eletrônicos como os celulares, computadores etc. 

A IA é construída por uma grande quantidade de dados e aprende a partir desses dados, sendo que a falta de determinados dados pode causar efeitos indesejáveis ou irreversivelmente danosos aos seres humanos. Dois exemplos são a morte de uma pessoa por atropelamento (caso da Uber: https://autoesporte.globo.com/videos/noticia/2018/03/carro-autonomo-da-uber-atropela-e-mata-mulher-nos-eua.ghtml) ou a exclusão de todas mulheres em uma grande corporação (caso da seleção de currículos da Amazon: https://meiobit.com/391571/ferramenta-de-recrutamento-amazon-ai-discriminava-mulheres/). 

O viés que os dados podem colocar na IA resulta em objetivos que não são exatamente o que os seres humanos querem ou esperam. Falta a noção do que se deve ou não fazer nas "máquinas". 

A questão dos valores é inevitável, pois eles sempre existem na mente humana (que coloca os dados disponíveis para a IA) - A questão do que é certo ou errado ainda não é consenso entre os seres humanos, então passar isto às máquinas é possível? Tudo leva a crer que não. Ao menos até os seres humanos resolverem esta questão... Ética... Moral... portanto filosófica. 

Não se trata de valores individuais, pois estes variam de pessoa para pessoa conforme suas experiências e sua cultura. Na escala individual, um pode alegar que o acúmulo de dinheiro é mais importante que a equidade, outro pode afirmar que o amor é o que mais importa (etc) e assim ficaríamos reféns do poder de propagação de valores individuais de determinados indivíduos... Tratar valores como algo pessoal é reduzir a importância de tal assunto: É limitar algo que afeta coletivos à visão (opinião) de um ou outro indivíduo, por isso deve-se buscar o(s) valor(es) universais (éticos, morais, humanos), tema(s) de estudo das áreas da filosofia mencionadas acima, que regularmente tocam a religião, a espiritualidade e a psicologia (mais nitidamente as abordagens existenciais/ fenomenológicas, como a logoterapia, que lida com o sentido de vida). 

Assim como os valores, as questões sobre viés e noção de certo e errado são ou deveriam ser estudadas pela psicologia e principalmente pela filosofia. Porém há muitas décadas, infelizmente, a psicologia está predominantemente tomada por um viés materialista da neurologia e da psicofarmacologia, enquanto a filosofia depois de ser severamente influenciada por retóricos, tornou-se dominada por segmentações (diferentes linhas teóricas) quase não buscando mais valores universais. 

Valores universais são temas obviamente discutidos nas religiões e na espiritualidade há milênios na civilização humana. Embora a terminologia tenha mudado de tempos em tempos e de cultura para cultura, o assunto central sempre gira em torno do certo e errado, do bem e do mal e da importância de se pautar pelo bem, de agir do modo certo. 

Dentro deste tema óbvio, porém discutido há milênios, o bem se caracteriza pela caridade, solidariedade, equidade, empatia, o que exclui seus opostos como a ganância, a avareza, a iniquidade, a indiferença etc... 

A crítica ao viés materialista que eu faço, não é uma alegação de tudo o que foi proposto através deste pressuposto filosófico (ou ontológico) foi ruim ou inútil: Faço uma crítica por entender que este viés teve por fundamento a ciência formulada a partir da física newtoniana ("clássica"), que deu muito mais importância aos assuntos referentes à matéria perceptível do que às questões essenciais do ser humano como os sentimentos, os pensamentos (psicologia), a ética e a moral (filosofia). Apoiar-se no materialismo como uma verdade absoluta é um reducionismo e também um tradicionalismo, já colocado em contradição pela "revolução da física" que eu cito nestes 2 textos: https://nea-ekklesia.blogspot.com/2023/04/como-fisica-do-seculo-20-impactou-as.html e https://nea-ekklesia.blogspot.com/2023/07/mente-tempo-e-pressupostos-filosoficos.html

A importância de não reduzir o ser humano meramente ao corpo, à matéria, não deve ser deixada de lado. Cito esta importância em outro texto: https://nea-ekklesia.blogspot.com/2022/06/os-perigos-dos-materialismos.html 

Sentimentos e pensamentos não são perceptíveis publicamente, pois são fatores internos de cada ser humano, nem podem ser manipulados como a matéria em seus estados sólido, líquido, gasoso etc. A psique (Mente e/ou alma/ espírito) complementam a matéria, portanto a cosmovisão ou "ontologia" mentalista ou espiritualista (que inclui a espírita, a idealista alemã entre outras), serve para complementar a materialista, não para se limitar à esta nem para simplesmente recusá-la, mas para ir além. 

Não é coeso, muito menos necessário, excluir tais pressupostos dos estudos e pesquisas - Se há alguma dúvida de como pensamentos, sentimentos, valores e noções (a mente) interagem com o corpo humano, isto ainda pode ser descoberto... Com estudos transdisciplinares e não com reduções e recortes da realidade. 

Tanto que as propostas para as soluções dos problemas como a "inconsequência" da IA, podem surgir de ciências como a psicologia, de filosofias como a ética, de espiritualidades como o cristianismo, o budismo ou mesmo de campos que invocam mais de uma área do saber como o espiritismo, o Bhakti Yoga, a Kryia Yoga que utilizam a ética de textos como o Bhagavad gita etc. 

Embora o texto a seguir use a palavra caridade, entendo que ela possa ser substituída por solidariedade, ou talvez por um combinado de empatia e equidade

"Muito extensos e detalhados seriam os conselhos que vos deveriam ser dados sobre a necessidade de alargamento do círculo de caridade; sobre a inclusão nesse círculo de todos os infelizes cujas misérias são ignoradas; sobre todas as dores que devem ser buscadas em seus próprios redutos, para consolá-los em nome dessa virtude divina, a caridade. Vejo com satisfação quantos homens eminentes e poderosos colaboram na busca desse progresso que deve reunir todas as classes humanas: os felizes e os desgraçados. Coisa estranha! Todos os infelizes se dão as mãos e se ajudam reciprocamente na sua miséria. Por que os felizes demoram tanto para ouvir a voz do infeliz? Por que se faz necessária uma poderosa mão terrena para dar impulso às missões de caridade? Por que não respondem com mais ardor a esses apelos? Por que permitem que a miséria, como por prazer, macule a imagem da Humanidade? 

A caridade é a virtude fundamental que deve sustentar todo o edifício das virtudes terrenas. Sem ela não existem as outras. Sem caridade não há fé nem esperança, porque sem a caridade não há esperança de uma sorte melhor nem interesse moral que nos guie. Sem a caridade não há fé, porque a fé é um puro raio que faz brilhar uma alma caridosa; ela é a sua consequência decisiva. 

Quando deixardes que o vosso coração se abra à súplica do primeiro infeliz que vos estender a mão; quando lhe derdes sem se perguntar se sua miséria é fingida ou se seu mal tem um vício como causa; quando deixardes toda a justiça nas mãos de Deus; quando deixardes a cargo do Criador o castigo de todas as falsas misérias; enfim, quando praticardes a caridade pelo só prazer que ela proporciona, sem questionardes a sua utilidade, então sereis os filhos que Deus amará e que chamará para si."

Este trecho tirado de um texto do século 19 de Allan Kardec trata de um valor universal, bem como várias obras de outros autores de diferentes culturas também tratam: Eu poderia citar Platão, Comenius, Pestalozzi entre outros... Todos eles já sabiam da importância de um ou mais valores universais para humanidade. 

 

 

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