quarta-feira, 8 de junho de 2022

Os Perigos do(s) Materialismo(s)


Platão, um "amigo do saber" dualista? 
Durante o século 4 antes de Cristo, surgiu a filosofia de socrática, que continuava a estudar alguns temas a partir dos filósofos naturalistas, mas sem deixar a importância da humanização, e por isso, questionava apenas alguns pontos da religiosidade e da mitologia grega, como os contos que exaltavam a violência, o descontrole e a vingança. 
Em outros textos, eu já mencionei como o saber, o bem e a justiça foram temas centrais na obra de Platão, então tomarei outro enfoque da filosofia ocidental que viria a influenciar a ciência, séculos mais tarde: 
No texto "Eutífron", Platão mostra Sócrates dizendo que em toda discórdia sobre temas perceptíveis pelos nossos sentidos (usa os exemplos da quantidade de itens, altura e peso de um corpo), é possível recorrer a uma análise/ medição para se chegar a concórdia. E completa dizendo que não é possível usar tal resolução de medir/ analisar mecanicamente, quando a discórdia é sobre o bem e o mau, o belo e o feio e o justo e o injusto. 
Afinal, estes assuntos passam por um crivo das pessoas, sendo analisados em processos internos do ser humano, como o pensamento e o sentimento. E ninguém pode medir, pesar ou quantificar pensamentos e sentimentos. 
Esta ênfase dada em conceitos que não podem ser analisados mecanicamente nem externamente por um observador, faz com que diversos estudiosos, acadêmicos e afins, classifiquem Platão como um filósofo mentalista/ idealista. Porém um mentalista não se ocuparia de escrever obras como A República, onde o autor mostra seu mestre tendo longas discussões sobre como seria uma sociedade ideal. Um mentalista não discutiria a prática das artes e da política, pois ficaria preso só a teoria, a menos que ele inventasse um argumento de que toda matéria é fruto da imaginação... 
Entende-se que Sócrates dava uma "ênfase" nos conceitos mentais através de lógica: questionava, argumentava e refutava seus interlocutores, chegando à conclusão que praticamente todas as decisões e atitudes se iniciam nos processos internos dos seres, mais precisamente, em processos mentais, por mais complexos ou rudimentares que tais processos pudessem ser. Então, preocupando-se com a mente e com diversas práticas do ser humano, é mais correto afirmar que tanto Sócrates como Platão eram dualistas no que se refere a teoria da mente e da existência. Este dualismo pode ser entendido como uma teoria que estudou desde a prática, ou seja, fatores externos, observáveis, até as causas por trás destas práticas: Os pensamentos e sentimentos, processos perceptíveis apenas pelo indivíduo que os exercem e os sentem. Trata do "observável" (passível de análise pública) e do que está "além" desta possibilidade. Se tratando em teorizar sobre causas ou origens, além da capacidade da análise mecânica, é possível que a teoria da mente e da existência socrática (e platônica) seja até pluralista. 
Obviamente as teorias dualistas e pluralistas servem bem aos estudos que utilizam métodos investigativos MENOS objetivos, lidando menos com comparações diretas e mais com conjecturas e reflexões. Porém como não deixam de estudar as práticas e os fenômenos externos, elas podem também servir aos estudos objetivos. É claro que não alcançarão respostas de maneira rápida, mas por se aprofundarem mais lentamente nas questões e fenômenos, devem atingir resultados mais precisos. De qualquer forma estas teorias da existência e da mente devem servir melhor para estudar o que as ciências objetivas (ainda) não podem medir nem quantificar: as questões sobre a existência, sobre os sentimentos, os pensamentos e alguns outros assuntos diretamente relacionados a estes. 

Um resumo histórico do Dualismo vs o Monismo Materialista 
A revolução científica começou no final do século 15, durante o período denominado de Renascença. A Renascença por sua vez, começou na década de 30 do mesmo século a partir da difusão de textos de filosofia socrática/ platônica que ocorreu com o fim dos fracassados concílios da igreja católica entre os apostólicos romanos e os ortodoxos. Em um período muito próximo a este, mais precisamente em 1453, o Império Otomano termina sua conquista do decadente Império Bizantino, e as nações cristãs da Europa começam as grandes navegações em busca de novas rotas de comércio, e claro, de riquezas materiais. 
Já a ciência na Europa, começando com Nicolau Copérnico, passando por Kepler, Galileu até René Descartes, lentamente progrediu até por volta da virada do século 17 ao 18. Descartes trouxe a questão do "dualismo alma / corpo" ou "espírito / corpo" oriunda dos textos platônicos, de certa forma, aproximando-a de temas mais neurológicos e psicológicos. Neste final aproximado da "revolução científica" (alguns autores adiam o final da revolução para o século 19), as teorias dualistas começaram a ser consideravelmente questionadas por teorias monistas. Estas teorias monistas afirmavam que só há uma realidade, uma existência, considerando impossível uma separação entre mente (ou alma) e corpo. 
Neste período, do século 18 ao 19, ganharam forças basicamente duas teorias monistas da existência: o mentalismo e o materialismo. Então, durante o iluminismo do século 19, após variadas descobertas da biologia, aconteceu que o materialismo se sobressaiu tanto sobre o dualismo, como sobre o mentalismo. 
Como eu mencionei em outros textos, este período após as grandes navegações, foi de uma grande ascensão da classe burguesa majoritariamente europeia que enriqueceu muito com a exploração da América e a utilização de mão de obra escravizada. Tais fatos não são meras externalidades em relação ao mundo da filosofia e da ciência: parte dos "pensadores" e da "elite intelectual" (talvez a maioria) pertenciam a esta classe de burgueses enriquecidos. Não é difícil entender que tais indivíduos cedo ou tarde publicariam obras que defendessem o enriquecimento individual e criticassem (negativamente) as causas humanas e sociais. O materialismo que se opôs ao mentalismo e ao dualismo surge desta classe, que já não estava interessada em criticar só a religião por esta ser o suposto maior entrave para o desenvolvimento intelectual e científico. Um dos grandes autores a defender o empirismo, foi o mesmo a definir o liberalismo: o britânico Locke. Até aí, talvez fosse até (um pouco) "saudável", defender a possibilidade de terras privadas para diminuir o poder das monarquias e das igrejas europeias, porém não só os ideais, como também o comportamento das 3 classes dominantes, obviamente se tornou descontroladamente materialista durante todo o iluminismo (séculos 17 a 19). Por mais que o iluminismo foi um período de progresso científico (basicamente europeu), ele foi acompanhado e assombrado por uma objetificação de pessoas de classes mais pobres e de etnias "estrangeiras", com o aval da ciência que acabara de rejeitar as teorias dualistas e mentalistas para se fundar apenas no materialismo. Tanto teve o aval da ciência que o abominável movimento chamado darwinismo social ganhou força entre as elites brancas e resultou na invasão e partilha do continente africano entre líderes europeus na penúltima década do século 19. 
É claro que o materialismo científico não é mero sinônimo dos comportamentos materialistas nem é a principal e única causa de uma ganância unânime e dominante no mundo. Porém, por se tratar de uma teoria propagada inicialmente e principalmente por altas classes sociais do iluminismo, o materialismo é um dos fatores cruciais da objetificação do ser humano, e consequentemente, da exploração desumanizada do trabalho e dos recursos do planeta. Mais ou menos na época em que foi publicada a teoria da evolução das espécies de Darwin (e de Wallace, que teve menos fama por não pertencer às altas classes sociais), também foram publicadas as obras do espiritismo de Kardec. Kardec não negava a ciência, pelo contrário, chegou a propor que o espiritismo poderia passar por algumas correções devido às descobertas científicas. Porém o fundador da teoria (dualista ou pluralista) espírita, comentou sobre os perigos de um niilismo materialista (que também poderia ser chamado de materialismo niilista), ou seja, falou sobre a suposição de que nada existe além da matéria perceptível pelos cinco sentidos: 
"Pela crença no nada (que a mente não pode existir além do corpo), o homem concentra forçosamente todos os seus pensamentos na vida presente; não se poderia, com efeito, logicamente se preocupar com um futuro que não se aguarda. Esta preocupação exclusiva com o presente conduz naturalmente a pensar em si antes de tudo; é portanto o mais poderoso estimulante do egoísmo, e o incrédulo é consequente consigo mesmo quando chega a esta conclusão: Gozemos enquanto aqui estamos, gozemos o máximo possível, visto que depois de nós está tudo acabado; gozemos depressa, porque não sabemos quanto isso durará; e a esta outra, muito mais grave para a sociedade: Gozemos à custa de qualquer um; cada um por si; a felicidade, aqui embaixo, é do mais hábil. Se o respeito humano retém alguns, que freio podem ter aqueles que nada temem? Dizem a si mesmos que a lei humana não atinge senão os inábeis; é por isso que aplicam seu gênio aos meios de se esquivar dela. Se há uma doutrina nociva e antissocial, é seguramente a do niilismo [néantisme], porque ela rompe os verdadeiros laços da solidariedade e da fraternidade, fundamentos das relações sociais.
 " Suponhamos que, por uma circunstância qualquer, um povo inteiro adquire a certeza de que dentro de oito dias, dentro de um mês, dentro de um ano, será aniquilado, que nenhum indivíduo sobreviverá, que não restará mais nenhum traço dele depois da morte; o que ele fará durante esse tempo? Trabalhará para seu aperfeiçoamento, sua instrução? Fará esforço para viver?Respeitará os direitos, os bens, a vida de seu semelhante? Submeter-se-á às leis, a uma autoridade, seja ela qual for, mesmo a mais legítima: a autoridade paterna? Haverá para ele um dever qualquer? Seguramente não. Pois bem! O que não ocorre em massa, a doutrina do vazio realiza todo dia de forma isolada. Se as consequências não são tão desastrosas quanto poderiam, é porque primeiramente na maioria dos incrédulos há mais bravata do que verdadeira incredulidade, mais dúvida que convicção, e eles têm mais medo do nada do que querem demonstrar; o título de espírito independente lisonjeia-lhes o amor próprio; em segundo lugar, os incrédulos absolutos são ínfima minoria; sofrem a contragosto o ascendente da opinião contrária e são mantidos por uma força material; mas se a incredulidade absoluta chegar um dia ao estado de maioria, a sociedade estará em dissolução. É ao que tende a propagação da doutrina do niilismo." 
"Cada qual é livre sem dúvida em sua crença, de crer em alguma coisa ou de não crer em nada; mas aqueles que procuram fazer prevalecer no espírito das massas, sobretudo da juventude, a negação do futuro, apoiando-se na autoridade de seu saber e no ascendente de sua posição, semeiam na sociedade germes de distúrbio e de dissolução...
Nesta mesma época de Kardec, Darwin e Wallace, tivemos vários outros nomes que fizeram história e se envolveram em algum nível com a questão das bases filosóficas e métodos que viriam a formar a ciência, mas não vou tratar deles aqui, para o texto ficar mais "sucinto". 

Os Pressupostos Filosóficos "saem" da Ciência para Política e Economia
Embora tenha aparecido uma série de indivíduos elitistas e de direita no espiritismo décadas após Kardec (que não entenderam ou ignoraram os textos do espiritismo), aqui eu completaria que o argumento reducionista de que só a matéria perceptível pelos 5 sentidos humanos existe, serve praticamente só aos movimentos sócio-econômicos de direita, principalmente aos de extrema direita. Oras, o que os multimilionários acham do cristianismo? Qual o motivo para se preocuparem em distribuir riquezas? Medo de uma revolta popular? Certamente não, ao menos após o desenvolvimento dos motores movidos à combustível fóssil e o desenvolvimento de armas cada vez mais potentes e fáceis de usar. Com um capitalismo desregulado determinando regras da sociedade, os multimilionários podem comprar qualquer pessoa com extrema facilidade, tamanho é o poder de fascinação / persuasão com a promessa de fartas recompensas materiais. Ele pode pagar seguranças privados, advogados e juízes, adquirir imóveis em qualquer canto do planeta para se esconder, usar os veículos mais rápidos e modernos, isso sem falar em táticas desleais de mercado, como formação de cartéis/ oligopólios, monopólios, enfim... É possível entender que em nosso planeta, a matéria perceptível atualmente pertence aos líderes de (extrema) direita. Estes multimilionários podem até posar de filantropos e realizarem doações aparentemente grandes, mas que para seus bolsos, em nada pesam. O que é doar 75 milhões de dólares, para um bilionário com mais de 25 bilhões de dólares? É só fazer uma rápida continha: Tire "cinco zeros" de cada um destes valores e verás que é como alguém com 2500 (dois mil e quinhentos) dólares na conta, doar 7,50 (sete dólares e cinquenta centavos). 
A esquerda, supostamente preocupada com a sociedade, que acredita poder combater a direita com qualquer teoria materialista, está fazendo o jogo de seus adversários. Além de dinheiro e bens materiais serem a ferramenta da direita, a preocupação com a sociedade/ o coletivo, é preocupação com o próximo e portanto requer algum grau de empatia e solidariedade, por mais racionalistas que possamos ser. Os multimilionários sejam psicopatas ou perversos, resumidamente, não se preocupam com o próximo nem fazem nada de bom à sociedade. O líder de esquerda seja um cristão, um ativista ateu ou um político, se ele realmente faz algo por um coletivo ou pela sociedade é porque ele tem um mínimo de empatia/ sentimento pelo próximo. Ele pode ser predominantemente sentimental ou até mesmo racional, mas tem essa capacidade de sentir pelo outro, ou ao menos, de se colocar no lugar do outro, além de pensar/ planejar uma sociedade. 
Obviamente o texto não tem objetivo de simplesmente comparar as ideologias/ movimentos sociopolíticos de direita e de esquerda, nem de pregar o espiritismo como algum tipo de dogma. Este é só um levantamento de como o materialismo foi erguido a uma posição de verdade absoluta que acabou sendo propagado da filosofia, à ciência, chegando à economia, à política e claro, atingindo praticamente toda a civilização humana em algum nível... Um nível preocupante que deixarei para detalhar num próximo texto, onde posso abordar (não pela primeira vez) as ideologias que andam de mão dadas com o materialismo escrachado e com o (neo) liberalismo / capitalismo desregulado, como por exemplo, o consumismo, o culto ao corpo, a meritocracia etc.
 


Mas esse assunto de monismo (materialista) e dualismo tem importância? Bom, digamos que eles são modelos de existência, algo estudado pela ontologia, um campo da filosofia. O problema é que eles servem de raiz para a ciências, ou mais precisamente, de pressuposto filosófico da ciência. 
 E a ciência tem que ter um pressuposto filosófico?... 
Muitos diriam que sim, mas há uma corrente de estudos que nega isto: A fenomenologia alega que um pressuposto em prática é um preconceito. Por esta razão a fenomenologia explica que é preciso uma ausência de pressupostos para se estudar qualquer assunto buscando a verdade e evitando todo e qualquer tipo de viés. 
Esta postura é um bom começo, certamente melhor que o materialismo e o mentalismo (como proposta inversa do materialismo) que são reducionistas pelo simples fato de não deixarem questões desconhecidas em aberto, mas não há argumento ou teoria inventada pelo ser humano que vá ser isenta de problemas... 
Para se evitar que qualquer tipo de saber seja usado para o mal, ou seja, para causas mesquinhas, é preciso se pautar pelo bem. Este bem não é impossível de se definir: ele começa com humildade e desenvolve-se como justiça, equidade, solidariedade etc.
 
Fontes:
 
PLATÃO - Eutífron, ou Sobre a Piedade - L&PM Pocket, tradução do grego de André Malta;
KARDEC, Allan - O Céu e o Inferno, ou a Justiça Divina, Segundo o Espiritismo, tradução do IDEAK; 

FORGHIERI, Yolanda Cintrão - Psicologia Fenomenológica, Fundamentos, Método e Pesquisas; Ed. Pioneira;
 

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