terça-feira, 1 de agosto de 2023

Estado alterado da mente: a Relação entre "Mania e Magia"

 

No texto Fedro de Platão, Sócrates faz interessantes observações sobre as "loucuras", não como entendemos os transtornos mentais e suas várias classificações neste início de século 21, mas como estados alterados da mente, ou mais precisamente, da psiquê. 

Inicialmente é importante lembrar que a palavra psiquê era usada para descrever a alma e também a mente, pois durante a época em que Platão viveu, não havia clara distinção entre tais conceitos. A natureza da mente tendo aspectos "não mensuráveis", como pensamentos e sentimentos (etc), segue como um tema inconclusivo até este início de século 21, por mais que existam estudiosos que se apoiem numa "visão" de mundo / em pressupostos materialistas. 

A loucura abordada no diálogo então, trata a mente em estados alterados por dois motivos: a paixão erótica, ou seja o desejo referente à sensualidade e aos atos sexuais e a paixão incitada por um estado de inspiração. Este último estado era alcançado pelo indivíduo ao entrar em uma espécie de transe, seja através de rituais de música, de dança, ou de invocação espiritual. Um estado que colocava o indivíduo, seja chamado de apaixonado, invocador ou qualquer outro nome, em contato com um ser "sobrenatural", espiritual ou divino, independentemente de diferenciações entre estas classificações de seres. Os nomes de tais entidades espirituais da Grécia clássica variavam: ninfas, musas, daemons, bem como as traduções do idioma grego antigo para outras línguas: gênios, semi-deuses, deuses etc. Mas discutir quais são os nomes corretos não é útil, pois é pouco conclusivo e pode gerar discórdias, principalmente entre indivíduos que seguem uma determinada religião. O interessante do texto é que ele é válido para toda cultura, espiritualidade e religiosidade: A "paixão divina" era um estado alterado da mente, ou seja, uma mania, causada pela busca de uma beleza superior, transcendente: Sócrates explica que a pessoa ao perceber o "além céus", via o esplendor das virtudes dos deuses, como do bem, da justiça, da temperança, da pureza, que em tal "plano de existência" emanavam luz. Ao retornar sua consciência ao mundo sensível (perceptível, material) a pessoa que alcançara tal estado de êxtase então ficaria "louca" (maníaca, ou seja com mania) com saudades do bem, da virtude. Sócrates também explica que originalmente as palavras mania e mancia (manike e mantike) eram a mesma, e que só em um determinado momento da história é que realizaram uma separação (de mau gosto para Sócrates) entre tais classificações, considerando mania como loucura e a mancia como adivinhação, magia

Pois bem, as práticas mágicas, sejam em ordens filosóficas como os pitagóricos, em cultos pagãos ou em religiões, sofreram algumas mudanças com o passar dos tempos e com a dominância de determinadas culturas na civilização. Junto com estas mudanças práticas, também surgiram mudanças nas terminologias por variados motivos dos quais não me aprofundarei neste texto. Cerimônias, liturgias, rituais magísticos, invocações, não importa o nome - Um tema central neste assunto é o estado da mente particularmente "alterado", ou seja, que não está prestando atenção ao seu redor, não está preocupado com a realidade material, - está em uma experiência além do sensorial (dos 5 sentidos humanos). Este estado da mente é um processo predominantemente/ essencialmente interno do ser humano, pois envolve sentimento no sentido literal da palavra: tanto o sentir, de perceber internamente os pensamentos e emoções que surgem em sua própria mente, como também envolve os sentimentos, seja esperança, gratidão, devoção, serenidade ou algum outro. Entende-se então que tais processos envolvem condições psicológicas, seja considerada condições mentais ou espirituais, da alma, portanto é um assunto da psicologia. Porém seja na academia ou na mídia (tão dominadas pelo materialismo), os últimos estudiosos que conquistaram algum espaço ao abordar tais assuntos na psicologia, parecem ser considerados de pouca relevância na maior parte do mundo científico, seja nas pesquisas ou nos cursos universitários. Particularmente lembro-me de dois autores que abordaram um pouco destes assuntos e de maneiras distintas entre si: Wilhelm Wundt e Carl Gustav Jung. 

O segundo autor, Jung, ganhou mais notoriedade/ popularidade e trabalhou a importância dos símbolos/ da simbologia na vida humana. Porém o primeiro, Wundt, é meramente considerado o fundador da psicologia como ciência depois de ter criado o primeiro laboratório (ou um dos primeiros) de psicologia do mundo. Porém sua obra, praticamente abandonada pela academia, é mais complexa e vasta do que a mera criação de um laboratório ou do que a fundação de uma área da ciência. 

Mas o que talvez nenhum autor da psicologia tenha abordado é o significado ou a importância desse estado alterado da mente, ou mania, citada por Sócrates e/ou Platão. Curiosamente a mania de inspiração divina citada por Platão em sua obra Fedro, difere da paixão erótica, do desejo sexual - por que refere-se ao amor que precisa do verdadeiramente belo, que necessita da virtude que é um valor universal, não particular. Por universal podemos entender atemporal, que faz bem para toda e qualquer pessoa, ou mesmo para toda e qualquer forma de vida. Uma virtude verdadeira não é relacionada só a determinadas situações ou voltada apenas para determinadas pessoas. A virtude, quando realmente existe, é algo central no ser humano, portanto liga-se ao seu ser de modo profundo. A pessoa que é "generosa" apenas com um ou dois grupos de pessoas (família e/ou amigos, por exemplo) não é generosa. Ela apenas gosta dos amigos e/ou da família, ou se comporta como se tivesse uma obrigação para com estes grupos etc. O mesmo vale para qualquer outra virtude: ser humilde, receptivo, paciente, atencioso, amigável/ honrado etc. A virtude não sendo algo somente voltado a determinados indivíduos ou grupos próximos, é uma referência social: Tem seu valor, importância e utilidade não só para o ser humano como indivíduo, mas para o coletivo também. 

Voltando ao amor (surgido de uma "mania") de "inspiração divina", ainda que em linguagem um tanto figurada e talvez poética, Platão indica que Sócrates explicava sobre um sentimento, afinal é isto que o amor é. O amor de acordo com estes filósofos, é o sentimento transcendente, o qual eles chamam de "o alado". 

A mania explicada em Fedro então, demonstra que o essencial para uma experiência espiritual (seja mística, mediúnica ou de qualquer outra classificação) é o estado mental alterado. 

Tal estado é importante para cada indivíduo cultivar sua espiritualidade, seja através de um método magístico (rituais, cerimônias, liturgias), contemplativo (oração, meditação...) ou um meio termo destes dois modos (talvez a poesia, a música etc). É um estado de sentimento profundo e verdadeiro que ocorre interiormente em cada ser humano - somente o próprio ser humano pode alcançá-lo e entendê-lo, pois ao tentar classificar a experiência de outrem, a chance de se agir preconceituosamente é enorme, afinal este é um fenômeno possivelmente imediato, ou seja, que ocorre sem o meio. Imediato aqui não significa rápido ou instantâneo: É o que independe do meio (ambiente, social etc). Ela ocorre diretamente no íntimo da pessoa, "em sua psiquê", não necessitando sequer do uso de uma substância (psicoativa, por exemplo). Inclusive, Platão na mesma obra, indica que Sócrates antes de explicar as manias, havia entrado em um estado de "inspiração sobrenatural" ou de "possessão" pelas ninfas, sem utilizar substância alguma. Sócrates simplesmente faz um discurso breve, ou oração, dirigida às ninfas e começa a falar influenciado por estas entidades que eram possivelmente espíritos (daemons) da natureza (aqui falo do ponto de vista socrático/ platônico: uma visão de mundo, ou ontologia que não se reduzia a matéria perceptível). 

Como o discurso proferido neste estado tem um "tom" pessimista, pois resumidamente alega que estar apaixonado é ruim e que nunca deve-se unir-se a uma pessoa por quem se apaixona, Sócrates reconhece seu erro logo em seguida e busca corrigir-se, continuando o dialogo com Fedro e demonstrando que o amor é mais ideal e virtuoso do que a paixão erótica/ sensual. Ambos podem ser causados por uma mania (loucura, ou estado alterado da mente), mas somente o amor é transcendente e mais próximo do que é verdadeiramente belo. 

Note que a filosofia socrática citada aqui, além de abordar um sentimento, traça sua relação com um conteúdo moral (o bem, as virtudes, os valores), da ética - um campo fundamental que serve, ou deveria servir de base para ciências humanas como o Direito. Trata de um elemento que deveria ser objeto de estudo da psicologia (o amor) e que conecta-se com Ética, Ontologia (o que é mais verdadeiro, o que existe) e até mesmo com Religião/ espiritualidade. A moral, os valores e virtudes (enfim o bem), são um tema importante que estão por trás de toda decisão humana e que se tornaram mais evidentes com o desenvolvimento da "inteligência artificial" neste início de século 21 - tema o qual devo abordar logo mais neste blog.

Fontes:

JOWETT, Benjamin; The Dialogues of Plato/ Phaedrus (tradução do grego ao inglês)

Diálogos III (Fedro), tradução de Edson Bini - Edipro

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Os comentários não são moderados antes da publicação.