quarta-feira, 1 de novembro de 2023

Filosofia, Teoria Mente/ Corpo e o desenvolvimento da Psicologia (Pt. 1)

Introdução

 Neste texto, eu trago a relação histórica da "Teoria Mente/ Corpo" e sua origem na filosofia, com o desenvolvimento da psicologia. 

O psicólogo do desenvolvimento estadunidense, Robert H. Wozniak, em sua obra "Teoria da Mente-Corpo; de René Descartes à William James" afirma que o senso comum, ou seja a visão e/ou opinião popular, percebe uma interação entre mente e corpo. Nossas intenções, decisões, percepções, pensamentos e anseios afetam diretamente nossas ações e nossos corpos. O autor segue afirmando: "Estados do cérebro e do sistema nervoso, por sua vez, geram estados da mente. Infelizmente a noção do senso comum aparentemente envolve uma contradição: O cérebro e o sistema nervoso parecem claramente ser parte do mundo físico: tangível, visível, público e estendido no espaço. Pensamentos, sentimentos, consciência e outros estados da mente se enraízam no tempo, mas não no espaço. 

Esta aparente "contradição" trazida por Wozniak na introdução de seu livro, é "clássica", ou mais precisamente, segue uma tradição européia que se propagou durante a era moderna. Essencialmente trata-se de um argumento em reação aos estudos de René Descartes, que será analisado adiante. (embora também seja possível que anteriormente na história, também houve reação parecida às obras de Platão). 

 Wozniak prossegue com o tema na introdução de seu livro: O cérebro e a mente são de diferentes natureza e se, a lei da causalidade requer causas e efeitos serem de tipos similares (entre si), então é claramente impossível para o cérebro gerar a mente ou mente afetar o cérebro. Então dita, esta contradição constitui metade do problema mente/ corpo - que é relação da mente com o cérebro. Se a distinção entre mente intangível / sem extensão (mas existente, a mente é algo, pois não é científico alegar a não existência...) e corpo tangível/ com extensão (finito, podemos presumir) é mantida, contudo, o problema mente/ corpo também é um problema da mente em relação ao mundo em nosso entorno...

Eis um assunto dos meados do século 17 que ainda hoje é debatido... E (infelizmente) deve ser debatido, até que se chegue numa resposta... Certamente uma resposta universal. Deixando para depois a possível busca da resposta, estas questões de "cosmovisão", ao longo da história tocou a área da filosofia chamada de Ontologia, mas não devem ser confundidas como se fossem meros sinônimos. Isto porquê a cosmovisão além de ser mais intuitiva do que o campo de estudo conhecido como ontologia, ela é uma "visão de mundo" podendo ser influenciada por opiniões, tradições e intenções. A cosmovisão (weltanschauung em alemão) é a forma de um indivíduo entender a realidade como um todo: o que é o espaço, seus corpos celestes, a natureza, o que é possível (de ser, de existir). É um conjunto de ideias e valores individuais ou culturais/ coletivos que podem incorporar conteúdos aprendidos e convicções, servindo como referencial para interações com o mundo, buscas motivacionais, objetivos, interpretações etc. Ao afetar intenções, motivações e objetivos, a cosmovisão naturalmente influencia não só narrativas e ideologias, mas também os pressupostos filosóficos da ciência (na verdade, de qualquer saber) pois relaciona-se com o ponto de partida de qualquer estudo.

Quando a questão da Relação Mente/ Corpo é levada, ou ampliada, para a relação da mente com a realidade exterior, ela indica a relação da filosofia com a ciência, ou, possivelmente como deveria se especular antes do ano de 1834 (quando a palavra cientista começa a ser usada de maneira padronizada), indicava a relação entre metafísica e filosofia natural. Relação esta, a qual frequentemente os "intelectuais" não chegam a um acordo, embora algumas linhas de pensamento se propaguem com maior facilidade do que outras. Tal desacordo será abordado mais adiante. 

Parte 1: As Relações Sócio-Históricas da Filosofia na Era Moderna 

Para compreender a ascensão da filosofia natural (astronomia, física, matemática, medicina, biologia e áreas afins) ante os campos mais "mentais/ espirituais" da filosofia (metafísica, ontologia, ética, epistemologia...), é importante situarmos na história, quando as discussões sobre a teoria da mente se intensificam no ocidente, particularmente na Europa. 

Tais discussões tornam-se notáveis durante o período, ou movimento intelectual, chamado de iluminismo. Sua duração não é consenso: Considera-se como seu início, o período das publicações de René Descartes ou das obras de Isaac Newton, como Principia. Seu término ocorre no período da Revolução Francesa que termina em 1799, embora alguns historiadores considerem que o iluminismo deve perdurar até 1815, com a queda do Império francês de Napoleão e a "Restauração Bourbon" (monarquia parlamentarista). 

Porém, ao se tratar da relação da teoria da mente (Teoria Mente-Corpo ou Teoria Mente-Cérebro), eu devo mostrar o desenvolvimento da filosofia por volta dos anos de 1620 à 1690 nesta 1ª parte do meu texto. Nas próximas partes eu não me limitarei ao iluminismo, mesmo porque a "ciência que trata a mente", ou seja, a psicologia "prática", é mais recente na história. Assim, eu indicarei mais adiante, como a revolução da física (1905-1926) afetou a filosofia, e consequentemente, a ontologia (incluindo a teoria da mente) e a epistemologia. 

Durante o século 17, a época de Descartes, Newton e Locke, a religião (tanto a católica como a protestante) ainda exercia significante influência, e portanto poder, sobre a sociedade. Esta influência que havia diminuído desde a Renascença, quando a filosofia foi "libertada" do domínio da igreja católica por volta da 2ª metade do século 15, ainda foi combatida na época de Descartes, pois o declínio das guerras por motivos religiosos no século 17 (que seriam "substituídos" por motivos econômicos e políticos) só ocorre após os sangrentos conflitos entre católicos e protestantes. Também é importante notar que tais guerras ocorreram por interesses de influência, ou seja, de poder. Os diversos conflitos religiosos da renascença desencadeavam em guerras de interesse de determinados líderes e elites - Apesar de "religiosos", eles estavam mais vinculados às instituições católicas e protestantes, do que à espiritualidade ou à cultura. Afinal as instituições religiosas se tornaram ferramentas de poder ao longo da história e é um fato público e notório que as guerras, sejam elas religiosas ou não, contradizem todo o cerne dos ensinamentos cristãos, que são baseados no perdão e na solidariedade, enfim no amor equitativo ao próximo, a si mesmo e a Deus. 

Sendo assim, fica claro que tais fatos não são meras externalidades em relação à realidade dos intelectuais, pois o acesso aos estudos não era universalizado durante o século 17 (os pobres, ou seja, as massas, em geral não podiam estudar), e a maioria dos filósofos vinham de classes burguesas, aristocráticas, religiosas ou militares. Todas estas classes privilegiadas estavam envolvidas em um nível menor ou maior nos conflitos históricos da transição da renascença ao iluminismo. Embora eu não traga detalhes da vida particular dos filósofos aqui, creio que não seja difícil observar quais dentre eles desenvolviam teorias e estudos mais libertadores, progressistas e universais e quais se alinhavam mais com os interesses de qualquer um dos "3 poderes": religioso (das igrejas), aristocrático (monárquico) e econômico (burguesia, já existente desde a formação dos burgos na baixa idade média). Alinhando-se mais ou menos com quaisquer destes poderes, citarei neste texto, só os que influenciaram ou colaboraram com a construção do conhecimento ao longo da história, particularmente com a construção da psicologia. Embora veremos que ao longo da história, foi impossível separar totalmente a psicologia da cosmovisão, da ontologia, da epistemologia e da neurologia. 

Também é interessante notar que a filosofia tem seu papel no processo histórico, não só com seus campos da ontologia e da epistemologia: Independentemente de quantos defeitos e vieses tivessem as leis, é graças à aplicação de conceitos da ética (campo da filosofia) à sociedade que foi possível desenvolver os sistemas sociais mais democráticos (políticos) que substituíram os mais absolutistas, como as monarquias, por exemplo, a partir do século 18. É verdade que mesmo em seu surgimento, a democracia, seja parlamentarista ou presidencialista, já era cercada por elites econômicas (a classe burguesa) mais ou menos poderosas, conforme a história de cada nação, mas apesar deste fato poder se aproximar da cosmovisão, já é se afastar da teoria mente-corpo. 

Então, a partir deste ponto trago um estudo histórico sobre a filosofia moderna e a Teoria Mente Corpo: Embora talvez seja possível considerar que os filósofos gregos da antiguidade discutissem a relação da mente (alma, psiquê) e corpo, é praticamente na era moderna que a questão é retomada e intensificada. Os estudos do filósofo (matemático e fisiologista) francês, René Descartes (1596-1650), sistematizam tais questões, e, de certo modo, o fazem pai do racionalismo, além de, junto aos estudos de outros filósofos de seu tempo, demarcarem o final da renascença e o início do iluminismo (ambos períodos da era moderna). 

 Estudando desde os 8 anos de idade no colégio jesuíta de La Fléche, Descartes desenvolveu o hábito de meditar sistemicamente durante as manhãs. Seja em uma destas meditações, ou durante o sono, no ano de 1619, ele teve 3 visões ou sonhos e acreditou que um espírito divino lhe revelou uma nova filosofia. Descartes também viu muito claramente que todas as verdades estavam ligadas umas às outras, de modo que encontrar uma verdade fundamental e prosseguir com a lógica abriria o caminho para toda a ciência. De acordo com Wozniak, Descartes foi "afligido" pelo afiado contraste entre a certeza da matemática e a controversa natureza da filosofia (certamente metafísica, ontológica etc), vindo a crer que a filosofia (possivelmente a natural que passaria a ser chamada de ciências, séculos depois) poderia ser levada a produzir resultados tão certos quanto os da matemática. Após este evento, ele formulou a geometria analítica e a ideia de aplicar o método matemático à filosofia. 

Após uma série de viagens e depois de se expor a ambientes com diversos tipos de pessoas, em 1621, Descartes começa a escrever Regras para a Direção do Espírito (publicado décadas depois), onde ele cita etapas essencialmente mentais de uma metodologia investigativa que envolve a intuição, a "não-aceitação de qualquer argumento escutado imediatamente como verdade", a firmeza na decisão, a ininterrupção durante o estudo, a reflexão comparativa, a enumeração etc. Em 1633 Descartes escreve De Homine, cujo ele não publicou por medo da inquisição. Este trabalho publicado após sua morte aborda reações automáticas em resposta aos eventos externos em relação ao corpo. Assim, um fenômeno (como uma chama, por exemplo) poderia afetar os fins periféricos das fibras nervosas que deslocaria o fim central. Com o "fim central deslocado", o espaço interfibroso seria rearranjado e o fluxo do espírito direcionado aos nervos apropriados. Este estudo "pré neurológico" começou a delinear a questão metafísica da relação mente/ corpo, cuja ele trabalharia em Meditações. Em 1637 Descartes publica Discursos Sobre o Método onde continua a trabalhar sua epistemologia, além de trazer a importância da moral, e os argumentos a favor da existência da alma e de Deus. Em 1641 ele publica Meditações sobre a 1ª Filosofia e em 1644, onde argumenta sobre a imortalidade da alma e a existência de Deus. Sua famosa frase "Penso, logo existo" é reforçada no seguinte argumento desta obra: "Eu me convenci de que não há nada no mundo – nem céu, nem terra, nem mentes, nem corpos. Não significa que eu não existo? Não, certamente devo existir se sou eu quem está convencido de alguma coisa. Mas existe um enganador, extremamente poderoso e astuto, cujo objetivo é ver que estou sempre enganado. Mas certamente existo, se estiver enganado. Deixe-o me enganar o máximo que puder, ele nunca fará com que eu não seja nada enquanto eu pensar que sou alguma coisa. Assim, tendo pesado completamente todas as considerações, devo finalmente concluir que a afirmação “Eu sou, eu existo” deve ser verdadeira sempre que eu a afirmar ou considerar mentalmente." A filósofa Christia Mercer, afirma que o argumento de Descartes nesta obra, indica que ele tivera contato com as obras de (Santa) Teresa d'Ávila, que descrevia suas experiências místicas (transcendentais) e defendia a oração mental, consciente e racional, contra a "reza mecânica/ automática", como por exemplo no livro As Moradas da Alma de 1588. 

Em Princípios da Filosofia, publicado em 1644 e dedicado à Elisabeth do Palatinado, o livro expõe os princípios da natureza – Mais notavelmente, estabeleceu o princípio de que, na ausência de forças externas, o movimento de um objeto será uniforme e em linha reta. Newton tomou emprestado este princípio de Descartes e incluiu-o no seu próprio Principia; Nesta e em outras obras, Descartes também critica o filósofo da Grécia clássica, Aristóteles, por causa de sua priorização na experiência sensorial, o que somado à síntese de seu pensamento (penso logo existo) define seu método de construção de conhecimento (epistemologia) racionalista (mais interno, ou seja, psíquico, do que sensorial/ externo). 

Em 1649 Descartes publica Les Passiones (As paixões). De certa forma incitando a psicologia, ele foi um dos primeiros cientistas a acreditar que a alma deveria ser sujeita à investigação científica. Os escritos de Descartes formaram a base para teorias sobre emoções e como as avaliações cognitivas foram traduzidas em processos afetivos. 

A concepção da alma racional trazida por Descartes, como uma entidade distinta do corpo e fazendo contato com este, possivelmente pela glândula pineal, pode ou não tornar-se "consciente" do fluxo diferencial do espírito trazido através do rearranjo dos espaço interfibroso. Ocorrendo esta "consciência", o resultado seria a sensação consciente do corpo afetando a mente. Por sua vez, na ação voluntária, a alma inicia o fluxo diferencial, em outras palavras, a mente também pode afetar o corpo. Esta é a base da visão dualista interacionista da relação mente-corpo, posteriormente chamada de "mente-cérebro", elevada como um dos temas centrais da filosofia a partir da obra de Descartes. Este assunto faz parte da cosmovisão, ou seja, da "visão de mundo" a qual voltarei a mencionar mais adiante.

A visão da relação mente-corpo de Descartes indica que o corpo é caracterizado pelo fato de ter uma extensão e a mente seria puro pensamento. Neste processo de busca pela verdade, talvez paradoxalmente, a reação à sua obra foi de "caos intelectual", como afirma Wozniak. Por fim, para Descartes, a ética era uma ciência, a mais elevada e perfeita delas. Como o resto das ciências, a ética teve suas raízes na metafísica. 

Descartes morreu em 1650, após uma caminhada matinal com a rainha sueca, Christine. A causa de sua morte não é consenso: Fala-se de pneumonia ou até mesmo envenenamento. Embora Descartes declarou-se católico, seus escritos questionadores desafiaram a visão de seus contemporâneos, portanto, as autoridades religiosas consideraram seus livros perigosos. Afinal, indivíduos da igreja que priorizavam os dogmas e/ ou indivíduos que usavam da religião para ganhar poder, provavelmente se incomodaram com a propagação de tantos questionamentos e esclarecimentos feitos pelo filósofo. 

A Reação ao Dualismo Mente-Corpo (Dualismo Cartesiano) 

A história da filosofia após Descartes, decorre permeada por diversas tentativas de escapar do dualismo Cartesiano, que passou a ser considerado um impasse por grande parte dos estudiosos. Isto começa a ocorrer logo na 2ª metade do século 17, seja porque, a partir dos estudos de Descartes, os estudiosos passaram a entender o corpo como algo espacial e a mente como algo incorpóreo, ou porque passaram a entender o corpo espacial, mas a mente temporal, sem conexão entre espaço e tempo, o dualismo mente-corpo foi julgado como insustentável. 

Ao meu ver manter tal opinião foi aceitável até a 1ª década do século 20, mas após a revolução da física e seu respectivo impacto na filosofia claramente explicado por Eddington, tal postura trata-se de desconhecer ou ignorar a história da ciência e suas inter-relações com a filosofia. Explicarei a seguir. 

Esta separação entre tempo e espaço tornou-se questionável desde o desenvolvimento da teoria da relatividade de Albert Einstein elaborada nas duas primeiras décadas do século 20. Einstein, por sua vez, se baseou em estudos de outros, como Fitzgerald e Hermann Minkowsi, este último que tornou-se famoso por sua explicação quadrimensional do espaço-tempo. Quando fala-se de uma realidade quadrimensional, abre-se a possibilidade de questionar as clássicas explicações tridimensionais da realidade, e isto, tanto o divulgador científico, Carl Sagan o faz, como também o astrofísico e filósofo Arthur S. Eddington, faz muito bem em seu livro The Nature of Physical World. Apesar de Sagan explicar de maneira didática e sucinta em um de seus vídeos, recomendo a leitura do livro de Eddington, que relaciona tal explicação com as descobertas de Einstein. Além disto, neste mesmo livro, Eddington explica que tudo o que é percebido por nosso "sistema" sensorial não se refere a uma aparência "real" dos objetos em si. Em um nível atômico dos objetos não há os estados sólido, líquido e gasoso como nosso organismo percebe: Suas partículas são compostas por uma porção ínfima de cargas elétricas separadas por espaços "vazios" proporcionalmente gigantescos, e possivelmente mantidas em uma relação ou sistema através de um campo (eletromagnético). E apesar desta realidade que compõe todas partículas de todos objetos e corpos, nós não os enxergamos nem os tocamos como se fossem minúsculas cargas elétricas meramente espaçadas entre si. Apesar de suas explicações mostrarem o impacto da revolução da física na filosofia, Eddington afirma que tais conclusões são resultados matemáticos e também possuem aplicações práticas. 

Sendo assim, analisemos estas afirmações e questões clássicas: Há uma contradição mesmo? A contradição tradicional (levantada por autores posteriores à René Descartes, ainda na 2ª metade do século 17) é a que Wozniak afirma na introdução de seu livro: (...) "O cérebro e a mente são de diferentes natureza e se, a lei da causalidade requer causas e efeitos serem de tipos similares, então é claramente impossível para o cérebro gerar a mente ou mente afetar o cérebro". Note a certeza das afirmações: "O cérebro e a mente são de diferentes natureza"(...) Esta conclusão deve ser baseada no pensamento da época de Descartes quando não se tinha noção da constituição do átomo (cargas elétricas) nem sabia-se da existência de campos eletromagnéticos. Hoje sabemos que o corpo humano, como qualquer outro corpo na Terra, é composto por átomos, subpartículas e possíveis campos/ ondas eletromagnéticas como mencionei anteriormente. Além disto, células do corpo humano podem reagir a certas ondas eletromagnéticas e tanto os átomos, como os orgãos humanos geram campos eletromagnéticos. A segunda afirmação talvez seja mais contestável do que a primeira: "é claramente impossível para o cérebro gerar a mente ou a mente afetar o corpo". Se tal impossibilidade fosse devido ao fato do cérebro ser um mero órgão corporal, enquanto a mente é algo complexo, coeso e imperceptível sensorialmente e que assim, algo rústico não gera algo mais complexo do que si mesmo, eu poderia concordar com tal impossibilidade. Porém, esta certeza de Wozniak de que o cérebro não pode gerar a mente é baseada numa realidade meramente tridimensional, onde o corpo com sua espacialidade e a mente sem tal característica, não poderiam sequer se relacionar. Esta questão então é aceitável dentro das limitações das descobertas científicas do iluminismo - Um modelo científico que devido a incapacidade de se investigar os níveis sub atômicos da "matéria", a falta do entendimento do que é espaço-tempo e a falta da prova matemática de uma (ou mais) dimensão além das 3 percebidas sensorialmente, não podia aceitar a interação de algo não perceptível pelos sentidos humanos com algo perceptível pelos mesmos. 

Diga-se de passagem, esta regra criada pelos filósofos naturalistas do iluminismo (de que a lei da causalidade requer causas e efeitos serem de tipos similares) faz sentido, mas possivelmente nem levava em conta de que diversas outras formas de vida além do homo sapiens, são capazes de perceber radiações, sons e cheiros que nós não detectamos naturalmente. A partir destes conceitos "iluministas" predominantemente sensoriais antropocêntricos, os filósofos naturalistas dos séculos 17, 18 e 19, criaram uma série de regras sobre os campos da filosofia: Particularmente sobre a ontologia e a epistemologia. Estas regras gradativamente moldaram a ciência tradicional, centrando-se nas propostas de alguns autores que se tornaram mais proeminentes durante a história moderna da filosofia, como Isaac Newton, John Locke e alguns outros posteriores que mencionarei neste texto. 

Eddington, por exemplo, em seu livro The Nature of Physical World, explica que a revolução causada pelas teorias da relatividade e da física quântica, afetaram a filosofia, evidenciando a importância da interpretação (processo cognitivo, subjetivo etc) e da inevitabilidade da inferência não só em toda a ciência, mas como praticamente em toda (vivência d)a realidade. Este impacto refere-se à relação da mente com a percepção e com o mundo externo, que já não é mais puramente e exclusivamente tridimensional. Também refere-se à relação da percepção com qualquer objeto ao seu alcance, que é constituído por átomos e suas respectivas sub-partículas, dos quais só um bilionésimo de sua estrutura é "partícula" (carga elétrica). Além disto, tal impacto refere-se a possibilidade dos campos (eletromagnéticos, ou qualquer outro, não sou físico para detalhar tal assunto) serem mais importantes do que as partículas. Partículas estas, tão priorizadas nos métodos da ciência tradicional, com seu pressuposto/ visão de mundo materialista e sua epistemologia empírica e reducionista (aqui, reducionista é aplicado no sentido de se dividir o objeto de estudo nas menores porções possíveis para realizar possíveis descobertas). 

O dualismo mente-corpo então passa a indicar que ainda falta realizar todo um conjunto de descobertas entre o corpo e mente, seja a mente incorpórea, conectada ao tempo ou seja ela qualquer outra "coisa". "Coisa" esta que não se trata de um conjunto aleatório de elementos, pelo contrário, a mente de qualquer indivíduo tem uma história constituída por relações, uma coerência, uma individualidade e uma complexidade. Tais características indicam que, com toda sua vastidão de elementos (pensamentos, sentimentos, intenções, memórias, intuições etc), a mente não pode ser reduzida - seja qual for o significado atribuído à palavra reduzida: simplificada, limitada, repartida, dividida (etc), tornando óbvio que não pode ser estudada por uma epistemologia puramente empírica, onde exige-se um método de investigação sensorial com reprodução das experiências. Todos estes elementos e processos da mente (pensamentos, sentimentos etc) não são diretamente observáveis pelo sistema sensorial - apenas o indivíduo que os tem, os sente e os trabalha diretamente, mas isto só começará a ser explicado séculos depois de Descartes, com estudiosos como Wilhelm Wundt. 

 Retornando ao início do iluminismo, o filósofo inglês Henry More (1614-1687) rejeitou o dualismo cartesiano pelos seguintes motivos: "Seria mais fácil para mim atribuir matéria e extensão à alma, do que atribuir a uma coisa imaterial a capacidade de mover e ser movido pelo corpo." As suas dificuldades com o dualismo cartesiano surgiram não de uma incapacidade de compreender como as substâncias materiais e imateriais poderiam interagir, mas de uma relutância em aceitar qualquer entidade inextensa como qualquer tipo de entidade real. More continua "... é claro que se uma coisa existe, ela deve ser estendida." Assim, para More, o “espírito” também deve ser ampliado. Isto o levou à ideia de uma 'quarta dimensão' (termo que ele cunhou) em que o espírito se estende (à qual deu o curioso nome de "espissitude essencial") e a uma solução original para o problema mente/ corpo. Aparentemente suas explicações tiveram baixa repercussão na história da filosofia... 

Poucas décadas depois, o sacerdote católico e filósofo francês, Nicolas Malebranche (1638-1715), foi influenciado pelas obras de Descartes, mas não sem fazer críticas divergentes ao "pai do racionalismo". Malebranche nega a dualidade mente-corpo e seu possível "elo" ou "causalidade" entre ambos através da glândula pineal. O autor, talvez devido a sua vida sacerdotal, busca uma resposta em Deus e a resposta para tal dilema da relação entre o corpo "espacial" e a mente "incorpórea" é O próprio Deus, o que deve estar em acordo com a onipresença Dele. Neste ponto, Malebranche afirma que entre corpo e mente há uma correspondência, mas não interação (um não age sobre o outro e/ou não entra em contato). "Co-responder" então deve significar realidades distintas, mas que respondem juntamente, talvez num sentido de paralelismo. 

Uma visão mais duradoura na história da filosofia ocidental foi apresentada pelo filósofo neerlandês Baruch de Espinoza (1632-1677). Devido a suas ideias divergentes do judaísmo, Espinoza, de família portuguesa sefardista refugiada nos Países Baixos, foi expulso da comunidade judaica, como um herege e passou a utilizar os nomes Bento e Benedictus ao invés de Baruch. 

Para manter Deus como a causa verdadeira, sem abandonar a causalidade nas esferas física (corporal) e mental, Espinoza abandona o dualismo interacionista de Descartes, a favor de uma teoria do "aspecto-duplo": O corpo e a mente seriam diferentes aspectos de uma mesma realidade ou substância, esta que seria Deus. Estes argumentos, considerados panteístas, são apresentados em sua principal obra, De Ethica, publicada em 1677 pouco depois de sua morte. 

Outra alternativa ao dualismo Cartesiano, foi o dualismo psicofísico do polímata saxão (germânico) Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716). Corpo e mente não afetam um ao outro, não havendo causalidade entre eles, mas os eventos destas duas realidades se correspondem sem o auxílio de uma terceira entidade. Nas obras Systéme Nuveau de la nature (1695) e Eclaircissement (1696) Leibnz apresentou a articulação de seu paralelismo psicofísico onde ele adaptou uma metáfora ocasionalista (de Malebranche) em uma harmonia pré-existente. Assim, para Leibniz, Deus não interferiria constantemente na lei natural - a harmonia entre corpo e mente teria sido pré-estabelecida no momento da criação. 

Mais respostas ao dualismo cartesiano começam a vir da Inglaterra no final do século 18: John Locke (1632-1704) cresceu em um ambiente liberal dos puritanos, sendo educado na Christ's Church - Oxford. Além de adquirir a fama de um dos pais do liberalismo, tratando os campos de estudos mais relacionados à ontologia e à epistemologia, sua obra Essay Concerning Humane Understanding foi datada em 1690, apesar de escrita em 1689. Nesta obra Locke muda a discussão da Relação Mente/ Corpo ao campo puramente "psicológico" da experiência, mais precisamente, ao campo sensorial, constratando a experiência refletiva da mente (interna) com sua própria experiência das coisas (externa). Enquanto René Descartes e Francis Bacon (1605) levantaram a questão de qual método seria o ideal para construir conhecimento, Locke, de sua perspectiva empiricista, propôs a questão epistemológica dos limites do conhecimento.* Assim, limitando o conhecimento ao método empírico, contrariava-se não só às proposições racionalistas de Descartes, como também começavam as tentativas de limitar o conhecimento às experiências sensorialmente perceptíveis. 

Wozniak explica que Locke, em seu "Ensaio sobre o Entendimento Humano" fez uma distinção entre qualidades primarias e secundárias. As primárias seriam qualidades como a solidez ou extensão e seriam completamente inseparáveis dos corpos nos quais elas são inerentes. As secundárias seriam os poderes inerentes nos objetos para produzir sensações no perceptor, como cor, odor ou som. Estas características em si não seriam inerentes nos objetos. 

O irlandês, George Berkeley (1685-1753), educado no Trinity College de Dublin, afirmou que todas estas qualidades primárias e secundárias citadas por Locke não são inerentes nos objetos em si e sim, em Deus. Wozniak afirma que, apesar de não discutir sua cosmovisão imaterialista em seu 1º livro, Essay Towards a New Teory, Berkeley deixa isso implícito nas demais obras, combinado com uma visão proto-associativa da importância das conexões entre ideias. 

O tratado Um Discurso sobre Obediência Passiva (1712) é considerado a maior contribuição de Berkeley para a filosofia moral e política. Nesta obra, Berkeley defende a tese de que as pessoas têm “o dever moral de observar os preceitos negativos (proibições) da lei, incluindo o dever de não resistir à execução da punição”. exceções a esta declaração moral abrangente, afirmando que não precisamos observar os preceitos de "usurpadores ou mesmo de loucos" e que as pessoas podem obedecer a diferentes autoridades supremas se houver mais de uma reivindicação à autoridade máxima. Berkeley defende esta tese com provas dedutivas decorrentes das leis da natureza. Primeiro, ele estabelece que, porque Deus é perfeitamente bom, o fim para o qual ele ordena aos humanos também deve ser bom, e esse fim não deve beneficiar apenas uma pessoa, mas toda a raça humana. Como esses comandos – ou leis – se praticados, levariam à aptidão geral da humanidade, segue-se que eles podem ser descobertos pela razão correta – por exemplo, a lei de nunca resistir ao poder supremo pode ser derivada da razão porque esta lei é “a única coisa que se interpõe entre nós e a desordem total”. Assim, essas leis podem ser chamadas de leis da natureza, porque são derivadas de Deus – o próprio criador da natureza. "Essas leis da natureza incluem deveres de nunca resistir ao poder supremo, nunca mentir sob juramento, nunca fazer o mal para que o bem possa advir disso (etc...). Pode-se ver a doutrina de Berkeley sobre a obediência passiva como uma espécie de “utilitarismo teológico”, na medida em que afirma que temos o dever de defender um código moral que presumivelmente funciona no sentido de promover o bem da humanidade. No entanto, o conceito de utilitarismo 'comum' é fundamentalmente diferente na medida em que "faz da utilidade o único fundamento da obrigação" - isto é, o utilitarismo está preocupado em saber se ações específicas são moralmente permissíveis em situações específicas, enquanto a doutrina de Berkeley está preocupado em saber se devemos ou não seguir regras morais em toda e qualquer circunstância. Enquanto o utilitarismo do ato pode, por exemplo, justificar um ato moralmente inadmissível à luz da situação específica, a doutrina da Obediência Passiva de Berkeley sustenta que nunca é moralmente permissível não seguir uma regra moral, mesmo quando parece que quebrar essa regra moral pode alcançar os finais mais felizes. Este trabalho parece indicar a importância do(s) valor(es) universal para a sociedade, ou seja, a importância de se por em prática (nas leis, política) o campo filosófico da ética. 

Em sua obra A Treatise Concerning the Principles of Human Knowledge (1710) Berkeley afirma “Não discuto contra a existência de qualquer coisa que possamos apreender, seja pelos sentidos ou pela reflexão. Que as coisas que vejo com os meus olhos e toco com as minhas mãos existem, realmente existem, não faço a menor questão. A única coisa cuja existência negamos é aquilo que os filósofos chamam de matéria ou substância corpórea. E ao fazer isso, não há dano causado ao resto da humanidade, que, ouso dizer, nunca sentirá falta disso". 

Buscando evitar ou "solucionar" o "problema" mente/ corpo, Wozniak diz que foi necessário negar qualquer distinção entre ambos e as teorias que foram negando tal distinção começaram a formar os movimentos filosóficos do monismo. Para o autor, Berkeley é o melhor representante do imaterialismo (possivelmente uma cosmovisão monista mentalista, ou monista espiritualista), pois teria afirmado que aquilo que pensamos que é corpo, é uma percepção da mente. Embora o trecho da obra de Berkeley mencionado acima, possa indicar que para ele os corpos (as coisas) perceptíveis existam, mas suas substâncias, ou materialidade, não. 

Estas "visões" do que é a mente e qual sua relação com o corpo, feitas pelos filósofos, acabaram tocando a questão do "estudo do ser", ou seja, uma questão que pode ser considerada do campo da ontologia. Porém é importante lembrar que tais visões naturalmente integram uma visão geral do filósofo sobre o que existe e o que não existe, ou o que é verdadeiro e o que não é e isto faz parte da já mencionada cosmovisão (Weltanschauung, "visão de mundo", paradigma etc) que pouco difere de uma opinião ou interpretação da realidade. Há um grande perigo em propor uma "visão de mundo" como se fosse um dogma, pois a filosofia não tem a função de impor meras regras, seja para afirmar o que existe ou para alegar que um método de investigação seja verdadeiro e o outro falso. Se há uma visão de mundo que deveria servir de pressuposto de qualquer área do saber, ela deveria fazer jus ao nome cosmovisão e ser aberta, sem afirmar a inexistência de determinados fenômenos.

A minha crítica à Locke aqui foi: Ele propôs limitar qual deve ser o método de investigação, ou seja de construção de conhecimento (epistemologia). Quando na verdade a função da epistemologia, de acordo com Descartes e Bacon, que seguiam a base da filosofia ocidental (Platão), é simplesmente testar e averiguar os métodos, ou seja, estudar os métodos e não impor um método! Ao estudar um método de investigação, descobre-se o melhor para desenvolver um determinado estudo ou grupo de estudos, e este método pode ser bom durante um período longo ou curto até que surjam novos métodos tão bons quanto o anterior, ou melhores do que este. 

*René DesCartes e Francis Bacon não contradiziam a base da filosofia ocidental, como Locke contradisse.

Já a questão "o que é a mente" mostrou que alguns filósofos a entenderam como algo incorpóreo (sem extensão etc) e outros a vincularam ao sistema nervoso (cérebro etc). Isto identifica tal questão como parte de uma "visão de mundo" que toca o campo da ontologia. A ontologia durante esta fase inicial do iluminismo (de Descartes à Locke/ Berkeley) não havia sido elevada ao centro das discussões ainda. Christian Wolff foi um dos filósofos que tentou discutí-la, mas não me aprofundarei em seus argumentos neste texto. Originalmente nas bases da filosofia ocidental, durante a Grécia clássica (510 a.C. - 323 a.C.), "o ontos" (em grego), ou o ser, foi abordado em algumas obras de Platão. Em sua obra Fedon (96 b-e, 97 a-e, 98 a-b), Platão propõe que o professor de ontos deveria apresentar as melhores maneiras das coisas serem. Logo nota-se que a ontologia não afirmava meramente "o que é" e "o que não é". Ela não era um mero pressuposto nem uma visão de mundo e pouco diferia da teleologia (o estudo filosófico da finalidade etc).

Na continuação deste texto mostrarei como os monismos (materialista e mentalista) vão sendo apresentados como verdades absolutas... ou "fatos ontológicos incontestáveis". 

 Bibliografia

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