quarta-feira, 15 de novembro de 2023

Filosofia, Teoria Mente/ Corpo e o Desenvolvimento da Psicologia (Pt. 2)

 

Parte 2 - O Monismo ganha força como Teoria da Mente... e como "Cosmovisão/ Paradigma" 

O monismo é a visão/ interpretação de que o cosmo é uno, ou a realidade é una. Trata-se de uma parte essencial da cosmovisão, conceito que expliquei no texto anterior (§ 5). Tal modo de ver o cosmo/ a realidade pode ser materialista ou mentalista/ espiritualista. No primeiro caso ela é meramente sensorial, enquanto no segundo ela é mental. A visão mentalista tende a ser considerada mais confusa ou não-objetiva, mas isso não é necessariamente um fato: Uma cosmovisão espiritualista, por exemplo, pode afirmar que a mente é sinônimo de alma e que esta é imortal e mais importante do que toda a "matéria" ou realidade percebida sensorialmente. Assim ela não nega os objetos e fenômenos corpóreos, só considera mais importante o aspecto mental/ espiritual por entender que ele é irredutível, indivisível e superior ao corpo, pelo fato de controlá-lo. O próprio Berkeley, considerado um dos ícones do mentalismo no ocidente, não negava a existência de corpos perceptíveis sensorialmente, como eu cito no texto anterior. 

Teoricamente as visões monistas diferem da cosmovisão de Descartes que é considerada dualista devido ao fato de separar a mente e o corpo em naturezas diferentes entre si. 

 Wozniak diz que, embora os argumentos de Berkeley tiveram poucos aderentes em sua época, o imaterialismo viria a ressurgir no século 19 sob a forma da teoria da matéria mental (mind-stuff). Já o materialismo (de Demócrito e talvez, Aristóteles) que desde a antiguidade concorreu com o platonismo (um dualismo ou espiritualismo - aparentemente não há consenso sobre qual seria a cosmovisão ou teoria da mente da filosofia socrática / platônica), afirma que a matéria é fundamental. Embora o empirismo de Locke e a teoria do espaço e tempo absolutos de Newton (criticada por Berkeley) possam ter traços de materialismo, esta "visão de mundo", monista teve como seu representante mais extremo, o médico francês Julien O. de la Mettrie (1709-1751). Durante um ataque de febre, ele fez observações sobre si mesmo com referência à ação da circulação sanguínea acelerada sobre o pensamento, o que o levou à conclusão de que os processos mentais deveriam ser explicados como os efeitos de mudanças orgânicas no cérebro e no sistema nervoso . Ele elaborou esta conclusão em sua primeira obra filosófica, a Histoire naturelle de l'âme (1745). Sua publicação teria causado polêmica e La Mettrie renunciou ao seu cargo na Guarda Francesa, refugiando-se em Leiden. Lá ele continuou suas doutrinas de forma ainda mais ousada em L'Homme machine, um tratado escrito às pressas baseado em princípios consistentemente materialistas e quase ateus. La Mettrie acreditava que o homem, corpo e mente, funcionava como uma máquina. Embora tenha ajudado a aprofundar a visão de Descartes sobre a mecanização na explicação do comportamento corporal humano, ele argumentou contra a visão dualista cartesiana sobre a mente, ao alegar que Descartes era na verdade um materialista no que diz respeito à mente (isto contradiz uma série de afirmações de Descartes que se considerava ser, pelo fato de pensar etc). 

Diz-se que a priorização do prazer sensual de La Mettrie resultou em sua morte prematura. Aqui a palavra sensual não refere-se especificamente ao prazer sexual, e sim, ao sensorial, o que abrange o tato, o paladar, o olfato e possivelmente até a audição e a visão. Assim, é possível entender que a partir de suas próprias teorias, La Mettrie desenvolveu um estilo de vida hedonista. O embaixador francês na Prússia, Tyrconnel, grato a La Mettrie por curá-lo de uma doença, organizou uma festa em sua homenagem. Alegou-se que La Mettrie queria mostrar sua gula ou sua constituição forte devorando uma grande quantidade de patê de faisão com trufas. Como resultado, ele desenvolveu um tipo de doença gástrica seguida de uma febre forte e acabou morrendo. 

Nesta época o empirismo britânico parecia estar se propagando - Isto faz sentido, caso realmente o monismo esteve ganhando força (adeptos), pois este método, ou epistemologia, (empírica) complementa ao menos um tipo de monismo: O materialista. Explico a seguir. 

Se os filósofos naturalistas partem de uma visão do que realmente existe ("cosmovisão", paradigma ou weltanschauung) é só a matéria perceptível, ou seja, "pré - supõem" que só o que é detectado sensorialmente do meio exterior é real ou digno de estudo, então o empirismo é elevado a um estado de método absoluto e único de construção de conhecimento. Esta visão de mundo reducionista afeta a ontologia, devido ao fato de, em prática, considerar que só a matéria perceptível sensorialmente existe e só ela deve ser estudada para a construção do conhecimento. 

Interessante notar o contexto histórico mais uma vez neste ponto: As guerras por motivos religiosos já aconteciam cada vez menos, porém as guerras econômicas e políticas estavam longe de acabar - Pelo contrário: O Império Espanhol estava em declínio após severas derrotas bélicas, como as sofridas nas mãos de ingleses e neerlandeses. Diante tais nações, a Espanha perdera quantidade gigantescas de ouro e prata que ela tinha arrancado de outras civilizações (principalmente das nativo americanas, como dos Astecas, dos Incas e de localizações como Potosi). A Inglaterra já tinha assumido uma política externa claramente imperialista desde o período da rainha Elisabeth e de seu "conselheiro" John Dee. Superada grande parte dos conflitos entre católicos e protestantes (sejam calvinistas ou quaisquer outros), a França e os Países Baixos podiam se empenhar nos outros interesses que mencionei: Econômico e/ ou Político. Talvez devido a fatores culturais somados a tais interesses, os Países Baixos buscaram uma ascensão mais econômica (com a fundação das companhias das Índias e uma exploração colonial, em prática, exclusivamente econômica), enquanto a França buscava uma expansão mais política (territorial, bélica etc). 

Os estudiosos de cada nação continuavam tendo a mesma origem: as altas classes sociais, porém de acordo com a propagação desta influência (de interesses econômicos e políticos), a diminuição do interesse em temas religiosos, espirituais, místicos, metafísicos e afins deve ter se alastrado entre as altas classes sociais gradualmente. Isto pode ser notado na curta duração do rosacrucianismo, um movimento de intelectuais da Europa que se interessavam tanto pelos temas mais espirituais e/ou místicos, como pelos filosóficos (metafísicos, éticos, ontológicos, epistemológicos) e pelos naturais e/ ou "científicos". Este movimento que ganhou força no início do século 17 e antecedeu o iluminismo, foi sendo dominado por interesses "naturais" (de filósofos naturalistas), ou simplesmente foi sendo abandonado gradualmente até a virada ao século 18. Certamente diante uma "corrida" por interesses mais materiais, a elite intelectual européia foi assumindo uma cosmovisão mais voltada ao estudo da "natureza" e dos objetos, e portanto foi assumindo uma postura mais objetiva... e sensorial, como veremos a seguir. 

David Hartley (1705-1757) nasceu na Inglaterra e estudou no Jesus College, Cambridge. Enquanto o princípio de associação foi usado antes de Hartley e a frase "associação de idéias" pode ser traçada no apêndice da 4ª edição dos Ensaios de Locke, é em Hartley, como Wozniak (1992) e Young (1970) nos contam, que "a psicologia associativa" pela primeira vez assume uma forma definitiva não inteiramente derivada de questões epistemológicas (de métodos de construção de conhecimento). Ao relacionar o fenômeno da sensação, ideação e movimento ao sistema nervoso, ele estabelece os princípios da "psicologia" fisiológica... 

O teólogo Étienne Bonnot de Condillac (1715-1780), dá ênfase aos estudos das sensações transmitidas através dos sentidos externos, explicadas por Locke. Seu Traité des sensations, de 1754, foi feito para mostrar que as "impressões" externas, tomados por si só, podem explicar todas as ideias e todas as operações mentais. 

Como é possível notar, Hartley, ao possibilitar o desenvolvimento de uma "psicologia fisiológica", dificilmente trataria de questões emocionais profundas ou de impactos psicológicos causados por pressões sociais ou culturais - Ao ser "fisiológica", a psicologia naturalmente seria envolta ou confundida por uma área "mais biológica" de estudos, como por exemplo, a medicina. Já Condillac vê a interferência do meio externo na mente humana, mas alega que esta pode explicar toda a mente, praticamente ignorando possíveis questões complexas envolvendo temas como os sentimentos, valores individuais e processo histórico do indivíduo. 

Por um outro lado, Thomas Reid (1710-1796), desenvolve uma elaborada teoria das intuições e faculdades da mente humana dadas por sua constituição fundamental. 

Seu maior trabalho, An inquiry into the human Mind on the Principles of Common Sense, foi publicado em 1764, no ano em que aceitou a indicação de professor de Filosofia Moral na Universidade de Glasgow. Nesta obra, Reid articulou o postulado básico intuitivo do "senso comum", filosofia na qual, a faculdade de psicologia Escocesa, foi alicerçada. Intuições são tendências nativas para a ação mental, aspectos da constituição fundamental da mente humana, que regulam a experiência consciente de todo humano desde a nascença. Porque as intuições requerem a apresentação de objetos apropriados para serem convocadas à ação mental, a filosofia Escocesa é um realismo. Intuições não projetam a mente na realidade, elas permitem a mente acessá-la. De acordo com Wozniak, apesar do Intuicionismo ser um nativismo do processo psicológico, é um empirismo metodológico no sentido de que a investigação sobre a natureza e a existência de princípios mentais dados nativamente ocorre por indução a partir de fatos observados na autoconsciência. Thomas Reid cita que símbolos naturais, como as artes por exemplo, são reconhecidos e entendidos pelos ser humano em sua infância e pelos artistas. Porém Reid, possibilita entendermos que os adultos não familiarizados com as artes, precisam passar por um difícil processo de reaprendizagem para reconhecer/ entender tais símbolos, devido ao fato de terem passado por um longo período de desuso de tal linguagem. Por sua vez, os símbolos artificiais (exemplo: as linguagem escrita composta por letras, palavras etc) falam somente ao intelecto, não sendo "captadas" pelos afetos e emoções. A linguagem natural então, foi composta primariamente de sons, que são elementos naturais... Esta explicação de Reid sobre a linguagem parece ser uma tentativa de mostrar que a intuição é um processo primordial do ser humano. Wozniak afirma que foi indiretamente através de Reid, que Gall obteve a lista original dos 27 poderes da mente que guiaram sua tentativa de mapear a localização no cérebro. 

O filósofo prussiano, Immanuel Kant (1724-1804), em seu idealismo transcendental, argumentou que o espaço e o tempo são meras "formas de intuição" que estruturam toda a experiência e que os objetos da experiência são meras "aparências". Isto indica que ele trouxe, mais uma vez na história, uma cosmovisão monista mentalista, em "oposição" (ou alternativa) ao monismo materialista tipicamente defendido na filosofia natural que viria a se tornar a ciência a partir do século 19. Esta cosmovisão certamente é mais ampla do que a visão naturalista/ materialista, uma vez que traz de volta a importância dos fenômenos que não são perceptíveis sensorialmente sem negar o estudo da natureza em nosso entorno. Tal fato poderia resgatar a importância da ontologia como foi proposta por Platão (e certamente por seu mestre, Sócrates) nas origens da filosofia ocidental. 

Robert H. Wozniak alega que a interpretação de Ribot, de que a filosofia do século 18 culminou em Kant, não é uma sugestão sem razão, embora seja uma avaliação mais justa, afirmar que a filosofia dos séculos 19 e 20 seguiram Kant, mais do que as filosofias anteriores seguiram Descartes. Wozniak segue, explicando que uma das contribuições de Kant para a psicologia científica, foi o estabelecimento de pré-requisitos para que a psicologia pudesse se tornar empírica. Para o autor, outra contribuição consiste no tratado Anthropologie in pragmatischer Hinsicht, publicado em 1798. Nesta obra, Kant analisa a natureza dos poderes cognitivos, sensações de prazer e desprazer, afetos e paixões no contexto de negação de uma possibilidade de uma ciência empírica do processo consciente. Esta obra kantiana ajudou a definir o contexto onde não só Herbart e Fechner, mas também psicólogos fenomenologicamente orientados como Purkynê, Weber e Müller, trabalharam para estabelecer a ciência do fenômeno consciente. 

Dez anos mais novo que Kant, o médico germânico, Franz Anton Mesmer (1734-1815) formou-se em medicina no ano de 1766 com a trabalho Dissertatio physico-medica de planetarum influxu, onde teorizou a (polêmica) influência dos planetas na saúde humana. Entre seus pacientes, Mesmer realizou um tratamento na jovem Fräulein Oesterlin nos anos de 1773 e 1774, que apresentava sintomas convulsivos de dor nos dentes e ouvidos, vômito e síncope. Mesmer tentou relacionar a periodicidade das manifestações dos sintomas de Fraülein às flutuações de correntes (ondas) e no curso deste esforço, decidiu ver se ele poderia induzir uma "maré" artificial em seu paciente. Após aplicar 3 peças magnetizadas no estômago e pernas da paciente, Mesmer obteve sucesso cessando os sintomas por 6 horas e repetiu este tratamento com êxito no dia seguinte. Após observar os efeitos, Mesmer hipotetizou que há um outro princípio, um agente geral que causava a ação do magneto (imã) e que os imãs por si só eram incapazes de agir sobre os nervos. A partir daí ele formula o magnetismo animal e um fluído universalmente distribuído de incomparável rarefeita natureza que recebia e propagava toda impressão de movimento. Tal ação recíproca estaria sob leis mecânicas ainda desconhecidas. Mesmer diz que sua Carta explicativa de 5 de janeiro de 1775 foi transmitida para a variadas instituições científicas e para alguns cientistas. Somente a Academia de Berlim, no dia 24/03 daquele ano, escreveu uma resposta na qual confundia as propriedades do Magnetismo Animal que ia além do magneto, que seria só um condutor. A Academia de Berlim emitiu a opinião de que Mesmer era vítima de uma ilusão. As teorias do magnetismo animal e do "fluído universal" não foram bem recebidas nas instituições, seja porque não viram evidências perceptíveis ou porque não foram compreendidas. Mesmer alegou que médicos e doutores com os quais mantinha correspondência, passaram a espalhar que o tratamento era feito exclusivamente com imã ou só com eletricidade, embora ele publicamente trabalhara com ambos. Estes médicos foram desmascarados pela própria experiência, mas concluíram a partir dos seus fracassos, que as curas anunciadas por Mesmer eram imaginárias e que sua teoria era uma ilusão. Apesar de considerado charlatão por empiristas e por seus rivais, Mesmer desenvolveu o que naquele período foi chamada de cura magnética. Após remover os imãs de seu tratamento, a cura magnética requeria o redirecionamento do fluído através do médico que servia como uma espécie de conduíte. Assim o magnetismo animal era canalizado sobre o corpo do paciente através de "passes" magnéticos pelas mãos do médico, afirma Wozniak. 

A partir da década de 80 do século 18, Mesmer passa a ser cada vez mais rejeitado no meio acadêmico, após proeminentes estudiosos, reunidos pelo rei da França, analisarem o trabalho sobre magnetismo animal de Charles d'Elson e concluírem que os tratamentos eram realizados por "auto-sugestão" dos pacientes. 

Antes do "declínio" de Mesmer, Amand Marie Jacques de Chastenet, Marquês de Puységur (1715-1825), começou a experimentar a cura magnética. Trabalhando sobre um jovem camponês chamado Victor Race, o marquês utilizou o estado sonâmbulo do paciente, para este executar ordens das quais ele não se lembrava ao acordar. Puységur descobriu que Victor, que normalmente não ousaria confiar seus problemas pessoais à ele, admitiu durante o "sono magnético", uma disputa que tinha com a irmã. Neste processo, o marquês sugeriu para que Victor resolvesse a disputa. O jovem camponês acordou sem memória da sugestão e agiu conforme a sugestão recebida. Destas experiências, Puységur gradativamente chegou ao reconhecimento de que os efeitos magnéticos dependiam da força de vontade do magnetizador e da crença pessoal na eficácia da cura, vontade de curar e elo comunicativo (relacionamento) com o paciente. Em 1784, o marquês compilou estas observações nas Mémoires pour sevir a l'histoire et a l'establissement du magnétisme animal, um trabalho considerado o ponto de origem da psicoterapia, diz Wozniak. Apesar de trazer fatores fundamentais para o sucesso psicoterapêutico (vontade de curar, relacionamento/ vínculo terapêutico etc), a técnica de Puységur propagou-se juntamente com as explicações de Mesmer, praticamente tornando-se conhecida como mesmerismo nas mãos de figuras como Abbé José Custódio de Faria, Genéral François Joseph Noizet, Éttiene Félix, Baron d'Hénnin de Cuvillers e Alexandre Bertrand. 

Em pouco tempo tais práticas envolvendo conceitos do "magnetismo animal" (curas/ passes magnéticos, sonambulismo etc) seriam assimiladas também pelo espiritismo surgido na França e pelo espiritualismo de outros países que exerceriam influência em William James. 

Neste período, em paralelo aos estudos psicológicos que vinham se formando em duas linhas diferentes (a oriunda da filosofia e a oriunda da fisiologia/ neurologia), começavam os estudos da mente e comportamento humano a partir dos indivíduos considerados "loucos": Após a Revolução Francesa, o médico francês, Philippe Pinel (1745-1826), mudou a forma de olhar para os "aliénés" ("alienados" em português), afirmando que eles podem ser compreendidos e curados. Uma descrição de 1809 de um caso que Pinel registrou na segunda edição de seu livro sobre insanidade é considerada por alguns como a primeira evidência da existência da forma de transtorno mental mais tarde conhecida como demência precoce ou esquizofrenia, embora Emil Kraepelin seja geralmente credenciado com sua primeira conceituação. Esta linha de estudos médicos vai formando a psiquiatria, área a qual não me aprofundarei aqui. 

Embora os germânicos ainda tivessem grande influência de Leibniz (que difundiu uma cosmovisão dualista), e mais recente, de Kant (mentalista), nota-se que no início do século 19, já houve uma prevalência da cosmovisão naturalista que reduzia a visão de mundo sob pressupostos materialistas na filosofia da Europa, principalmente no eixo Inglaterra - França. Utilizo o termo reduzir aqui, porque tal visão de mundo, ou paradigma, estabelece limites à teoria da mente, à psicologia e aos transtornos mentais: Estes assuntos são relegados ao sensualismo (ao sensorial e ao neurológico). A visão naturalista, que é monista materialista, e consequentemente, niilista, como explicarei adiante, põe limites à variados campos de estudo, a começar pelos da filosofia, pois deixa em segundo plano a importância do estudo de como as coisas devem ser melhores (ontologia), como despertar os valores universais nos indivíduos e aplicá-los na sociedade (ética), quais são os melhores métodos de construção de conhecimento (epistemologia) etc. A cosmovisão também inclui conjecturas e reflexões sobre o que é a mente, o que afeta a psicologia e áreas correlacionadas por consequência. Porém este entendimento do mundo e do cosmo, não está isento de influências culturais e da história do indivíduo que apresenta a cosmovisão; A história do indivíduo inclui afetos (sentimentos e valores), crenças, intuições, conjecturas, interpretações, acesso aos estudos entre outros fatores, portanto dificilmente a cosmovisão não seria afetada por opinião. 

No século 18 então, haviam 3 frentes de estudos investigando a psiquê e os comportamentos humanos: Uma mais filosófica, oriunda de questionamentos epistemológicos, uma mais fisiológica/ neurológica e uma médica (psiquiátrica) oriunda dos estudos de supostos transtornados (não só "loucos" eram hospitalizados). Pode parecer estranho que a psicologia surja já dividida em sua origem, mas alguns pontos começam a se tornar claros neste momento da história: As linhas epistemológicas como as de Reid e Puységur, tratam de questões mais subjetivas do indivíduo, ou seja, suas intuições e afetos, portanto acabam possibilitando lidar com sentimentos, emoções e valores. As linhas fisiológicas claramente tocam áreas da medicina: os estudos sensoriais e dos reflexos fazem intersecção com a neurologia, com a óptica e outras áreas vindouras (psicofísica, frenologia etc). Neste ponto cabe um questionamento: A divisão, se realmente necessária, não deveria ser clara? A linha mais filosófica ou epistemológica ao valorizar mais o elo, a fala e a subjetividade do indivíduo não deveria se chamar psicologia? E a segunda linha não deveria ser campos da medicina por serem mais corporais? Não precisamos responder ainda, pois ao invés de fazer uma separação clara e objetiva, o que se seguiu dos meados do século 19 em diante foi, ou a tentativa de unir tudo sob uma psicologia transdisciplinar (Wundt) ou cada estudioso (uma série de estudiosos) querer impor sua visão de mundo/ paradigma como verdades absolutas estabelecendo limites de ontologia e método sobre paradigmas diferentes e sobre cosmovisões mais amplas. 

Possivelmente neste cenário, a questão da relação "mente - cérebro" tornou-se aguda para fisiologistas e psicólogos, como menciona Wozinak. O autor lembra que, de um modo geral, alguns autores ao longo da história já tentaram localizar a psiquê (alma) no cérebro, como por exemplo, Galeno (129-216), durante o Império Romano. 

Apesar de visões antigas, a tentativa de estabelecer localizações por meios empíricos de observação foram feitas essencialmente no século 19, tendo como um dos principais teóricos, o neuroanatomista/ fisiologista germânico-austríaco, Franz Josef Gall (1758-1828). Gall buscou desenvolver um novo método de cranioscopia para localizar faculdades mentais e deu sua 1ª palestra sobre o assunto em 1796. Suas palestras incitaram oposições devido ao seu viés materialista e em 1805 ele deixa Viena, partindo à Paris. 

De modo resumido, sua abordagem dependia de 3 suposições críticas: o tamanho e a forma do crânio refletiam no tamanho e forma das porções subjacentes do cérebro e que habilidades mentais eram inatas e fixas. Isto seria relacionado ao nível de desenvolvimento da habilidade inata. Com estas suposições, Gall pretendeu achar uma evidência de uma habilidade mental bem desenvolvida relacionada a uma determinada parte proeminente do cérebro. Com estas teorias, ele foi considerado o fundador da frenologia, que apesar de ser considerada pseudociência devido a falta de evidências empíricas ainda na 2ª metade do século 19, serviu de base para a neuropsicologia que viria a surgir em meados do século 20. Sua teoria serviu para afastar ideias extremistas do cérebro (ou mente) nascer como "tábula rasa", porém ele não pôde provar uma herança biológica de capacidades mentais, temas estes que continuam em debate até o início do século 21. 

Charles Bell (1774-1842) aprendeu a maior parte de sua instrução anatômica e cirúrgica de seu irmão John Bell, um médico. Em 1806 ele se mudou para Londres e 5 anos depois afiliou-se à Escola Hunteriana de Anatomia. Neste mesmo ano (1811), Bell imprimiu sua Idea of a New Anatomy of the Brain para circulação privada entre colegas. Nesta obra, Bell empregou evidências anatômicas para apoiar a afirmação de que as raízes ventrais da medula espinhal contêm apenas fibras motoras e as raízes dorsais apenas fibras sensoriais. Ao fazê-lo, ele derrubou séculos de tradição em que se presumia implicitamente que as fibras nervosas eram indiscriminadas em relação à função sensorial ou motora e estabeleceu a distinção fundamental entre esses dois tipos de processo nervoso. De acordo com Wozniak estes estudos de Bell chegaram a Bain e Spencer na "primeira psicologia psicofisiológica" (este último envolvido polemicamente com o darwinismo social!) e através de Jackson e Ferrier, ao estabelecimento do paradigma sensório-motor como base da localização funcional no cortex... 

Seguindo na história da fisiologia, o médico Marie-Jean-Pierre Flourens (1794-1867), que se opôs a grande parte das teorias de Gall, obteve algum sucesso ao estabelecer a relação do cérebro com a mente: Realizou o 1º experimento cirúrgico em animais que levaram à conclusão de que os hemisférios cerebrais são responsáveis pelas funções cognitivas superiores, que o cerebelo regula e integra os movimentos e que a medula controla as funções vitais. 

Voltando ás descobertas mais sensoriais, Ernst H. Weber (1795-1878) publicou De pulsu, resorptione, auditu et tactu em 1848. Em articulação com os estudos posteriores de Feschner, foi possível estabelecer relações quantitativas entre variações em eventos físicos e mentais. Ao vincular estes eventos, Weber colaborou com os estudos do ictiólogo, herpetologista (2 ramos da zoologia) e anatomista comparativo germânico, Johannes Peter Müller (1801-1858), pois, de acordo com Wozniak, tornou-se possível estabelecer uma função epistemológica do sistema nervoso em mediar a relação entre mente e ambiente físico. 

O último autor relacionado à "psicologia" sensorial, é Gustav T. Feschner (1801-1887), nascido na Prússia. Após estudar medicina, Feschner passou a se interessar em filosofia e física e fundou o programa para psicofísica. Sua obra filosófica, considerada panteísta, foi predominantemente ignorada, porém seus estudos relacionados à física foram bem recebidos: Feschner estabeleceu que a intensidade da sensação aumenta proporcionalmente conforme o logaritmo do estímulo. William James, rebate a teoria de Feschner explicando que embora os estímulos sejam compostos, as sensações não o são: “Toda sensação apresenta-se como uma unidade indivisível; e é completamente impossível ler qualquer significado claro na noção de que são massas de unidades combinadas". 

O interesse de Wozinak nestes estudos da fisiologia/ neurologia, em seu livro Mind-Body Theory - From Descartes to William James, devem indicar uma busca para a resolução do "problema" Mente/ Corpo... Mas vale lembrar que a teoria da mente, não é tema comprovado da ontologia, da epistemologia, muito menos das ciências biológicas e seus ramos (fisiologia, neurologia, medicina etc). Estudiosos destas áreas podem mostrar interesse e estudar o tema, mas explicarei como ele ainda pertence à cosmovisão:

Este é meu 2º texto sobre a teoria mente/ corpo e em breve publicarei o 3º e último texto sobre o assunto. Nem nestes meus 3 textos, nem no livro Mind and body: René Descartes to William James há um autor que tenha descoberto o que é a mente. Não havendo provas "científicas" (evidências, mensurabilidade) de uma localização da mente nem de um vínculo claro e completo entre mente e corpo, a questão fica em aberto e é de âmbito da cosmovisão. O tema é frequentemente comparado à ontologia ou confundido com a epistemologia, certamente porque os campos da filosofia não requerem provas materiais. Ou seja, se este não for um problema de "visão de mundo", é mais um problema filosófico do que científico. Assim, ao realizar a busca de tal resolução com enfoque nas áreas biológicas, corre-se o risco de se chegar à uma resposta parcial e reducionista, que descarta uma série de relatos de experiências negadas por seguidores da ciência tradicional materialista presa aos pressupostos e métodos anteriores à revolução da física do séc. 20 (como eu já mencionei). 

Conclusão: O pensamento cientificista, racionalista e materialista e seu impacto na epistemologia (na construção do conhecimento) 

Entendo que as descobertas da fisiologia/ neurologia possibilitariam a identificação de algumas funções específicas para determinadas partes do cérebro, retornando mais às questões neurológicas do que às questões de pressupostos filosóficos da ciência (no caso da psicologia), sejam estes pressupostos assuntos da ontologia, da epistemologia ou da cosmovisão/ weltanschauung/ paradigma. 

Independentemente com qual área de estudo este tema transdisciplinar se relacione, considero importante fazer um alerta sobre os rumos dos estudos sobre a psicologia e sobre a Teoria mente/ corpo: É importante não reduzir questões ontológicas, epistemológicas e de cosmovisão ao materialismo (a mente como um conjunto de meras respostas neuroquímicas), pois tal postura é tentar reduzir à matéria todo um campo da filosofia que afeta diversas outras áreas, da psicologia à ética, tocando até em questões da teologia, da espiritualidade, além da "cosmovisão" já mencionada... Os pressupostos filosóficos da psicologia servem como ponto de partida para o desenvolvimento de uma teoria, de uma abordagem e de estudos psicológicos. Ao lidar com o ser humano e sua complexa estrutura mental (seja chamada de psiquê, aparelho psíquico, essência ou comportamento secreto), mais do que qualquer outra área das ciências, os pressupostos da psicologia não deveriam reduzir nem sobrepujar a filosofia. A filosofia é o que impede que as ciências se tornem estudos estritamente racionalistas, insensíveis com questões humanas e culturais, como relações afetivas, dificuldades sociais e fatores culturais. A ética fazendo parte da filosofia, deve ser teórica e também prática ao ser aplicada às diversas áreas das ciências. A psicologia estudando e tratando o ser humano deve sustentar práticas que dão sentido à vida das pessoas e que defendam a equidade dos seres humanos para que todos tenham saúde mental. Defendendo a integridade e a importância de tais "objetos" de estudo da filosofia que estão intimamente ligados a valores universais, evita-se o cientificismo. E o cientificismo deve ser evitado pelos seguintes motivos: 

Para não reduzir a ontologia a um campo de estudo determinista, onde meramente se prega o que existe e o que não existe; 

Para que a "cosmovisão" seja aberta e não uma visão de mundo reducionista e dogmática (com argumentos do tipo só a matéria existe, nada existe, tais e tais coisas não existem); 

Não impor limites ou proibições epistemológicas, pois a epistemologia não deve impor limites determinando o que pode ser estudado e o que não pode. A epistemologia deve estudar quais métodos são melhores para se construir conhecimento, seja conhecimento especializado ou transdisciplinar; Seu rigor deve pretender clareza, coerência e precisão ética, o que difere de meros determinismos, hierarquizações e dogmas;

Atitudes como a redução da cosmovisão e da ontologia e como a imposição epistemológica negam a importância de outros saberes fora da ciência, além de contradizer até mesmo descobertas científicas que questionam o materialismo e o modelo tridimensional do universo. Não se encontra a resposta definitiva de um problema filosófico (seja da ontologia, epistemologia ou de outro campo), realizando descobertas em uma ou poucas áreas da ciência - a filosofia trata de questões amplas e profundas demais (universais) para se descobrir com poucos estudos objetivos e reducionistas. Para se resolver a teoria mente/ corpo, é preciso no mínimo transdisciplinaridade. 

O físico, matemático e poliglota (e polímata) indiano, Satyendra Nath Bose (1894-1974), conhecido por suas colaborações científicas internacionais, diz sobre sua experiência ao anunciar suas descobertas no meio acadêmico britânico: (...) "No decorrer de minhas pesquisas, fui inconscientemente levado às fronteiras da física e da fisiologia. Para meu espanto, descobri que as linhas limítrofes se desvaneciam e que pontos de contato emergiam entre os reinos do vivo e do não-vivo. A matéria inorgânica foi percebida como algo não inerte; vibrava intensamente sob a ação de forças numerosas. Uma reação universal parecia colocar o metal, o vegetal e o animal sob a mesma lei. Todos exibiam essencialmente os mesmos fenômenos de fadiga, depressão, com possibilidades de recuperação e estímulo, bem como a permanente falta de reação associada à morte. Cheio de assombro diante desta fantástica generalização, foi com grandes esperanças que anunciei minhas descobertas para a Royal Society - descobertas estas demonstradas através de experiências. Os fisiologistas presentes, porém, me aconselharam a limitar minhas pesquisas ao campo da física, onde reconheciam meu sucesso, em vez de invadir seus reinos estanques. Sem querer, eu me extraviara nos domínios de um desconhecido sistema de castas, ofendendo sua etiqueta.

A cosmovisão ao propor um modelo de mente e um pressuposto sobre a relação mente/ corpo, seja ela qual for, acaba servindo de base para os pressupostos filosóficos da ciência em geral. Como mencionei em textos anteriores, a cosmovisão não é sinônimo de ontologia (aqui me baseio nas obras clássicas de Platão e nas mais recentes de Viktor Frankl e não em autores como Leo Apostel). Ela pode ser usada como paradigma para se estudar uma determinada área, mas não define o que é ou o que existe e o que não existe. Isto porque todo estudo parte de uma visão de mundo, uma interpretação do que existe e não de um dogma nem de restrições e limitações. Recortes e reduções podem servir (e serviram) para estudos especializados, porém tanto a cosmovisão, como a ontologia em si devem possibilitar estudos interdisciplinares/ transdisciplinares. Não cabe a epistemologia impor limites como verdade absoluta, nem é ético reduzir a ontologia à uma determinada visão de mundo criando dogmas para a ciência. Ou seriam os dogmas, algo científico? Eu tenho certeza que não, pois caso contrário, correríamos o risco de propagar mentiras como ciência, prejudicando a sociedade de variadas maneiras.

Um exemplo de busca de pressupostos abertos à transdisciplinaridade na história é a teoria geral dos sistemas. Este modelo científico do século 20, iniciado por Ludwing Von Bertalanffy (1901-1972), que utiliza de pressupostos as variadas relações entre sistemas, deve seguir uma cosmovisão e uma ontologia aberta, ou pluralista. Isto é uma postura de base, ou seja, estrutural, básica, de qualquer campo de estudo: Similar o conceito socrático/ platônico de presunção da ignorância. Esta postura entende que todo ser humano tem intenção, portanto não se afirma que tudo é matéria ou tudo é mente - nem se afirma a inexistência de algo. A partir deste ponto, ao iniciar qualquer estudo, deve-se buscar só uma pauta, simples, porém certamente difícil em algum nível: A ética, baseada em valores universais (obviamente não se trata de valores individuais), ou talvez, valores que converjam em uma valor universal. Eis o esforço necessário: pautar os estudos de acordo com suas finalidades, e que estas finalidades sejam éticas, baseando-se em um (ou mais) valor(es) universal(is). 

Afirmar a não existência de alma ou de espírito(s) como verdade absoluta é uma tentativa de determinar o que é real e o que não é. Além dos problemas já mencionados referentes à elevação do materialismo e do niilismo como verdades absolutas, tais argumentos criam então um (ou mais) "clube da verdade" - Muito comum na academia/ nos meios "científicos", esta visão tradicionalista é dogmática, só diferindo da religião institucionalizada, pelo fato dos dogmas "científicos" afirmarem que a matéria perceptível (ou uma "realidade" tridimensional) é tudo. 

As intenções existem em todos os campos do saber, portanto delimitar o que é real e o que não é, é uma ferramenta de poder. Qualquer argumento reducionista elevado como verdade absoluta, fará com que o objeto resultante de tal reducionismo seja um tipo de ídolo, um símbolo sagrado - porém continua sendo uma ideia que esconde algo por trás. A questão é: Seja na religião, na filosofia, ou na ciência há dogmatismo? Uma verdade absoluta que propague a indiferença? Ou pior, uma verdade que gera rivalidades? 

O problema da religião não é ela em si. Não é a religiosidade nem a espiritualidade - é a utilização desta como ferramenta de poder. É usar a religião para ganho próprio, para oprimir e/ ou para excluir e isto pode ser feito por outros meios, seja através da filosofia, da ciência etc. 

No próximo texto indicarei como a ciência se separou da filosofia e quais implicações notórias relacionadas com esta separação. 

Bibliografia 

WOZNIAK, Robert H., Mind and Body - From Descartes to William James; 1992;

Aram Vartanian, La Mettrie's L'Homme Machine: A Study in the Origins of an Idea (Princeton University Press, 1960), p. 2-12

Yates, Frances A 1972”. The Rosicrucian Enlightenment, LondresGreenwood, John (2009). A Conceptual History of Psychology. Boston: McGraw-Hill. ISBN 978-0-07-285862-4.

Thomas Reid. An Inquiry into the Human Mind on the Principles of Common Sense. Ed. Derek R Brookes. Edinburgh: Edinburgh University Press, 1997. pp. 256–257

Durant, Will; Durant, Ariel (1967). The Story of Civilization: Rousseau and Revolution. [S.l.]: MJF Books. pp. 571, 574. ISBN 978-1-56731-021-4. Consultado em 22 de agosto de 2020. Cópia arquivada em 20 de dezembro de 2020

DARNTON, Robert. O lado oculto da revolução: Mesmer e o final do Iluminismo na França. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 1988.

Mesmer, Franz Anton (1767). «Dissertatio physico-medica de planetarum influxu». The Wood Library Museum. Consultado em 27 de Julho de 2015

Notice sur idref.fr [archive]

Yuhas, Daisy. "Throughout History, Defining Schizophrenia Remains A challenge (timeline)". Scientific American Mind (March 2013). Retrieved 2 March 2013

Graham, Patrick. (2001) Phrenology [videorecording (DVD)] : revealing the mysteries of the mind . Richmond Hill, Ont. : American Home Treasures. ISBN 0-7792-5135-0

public domainSturt, Henry Cecil (1911). "Fechner, Gustav Theodor". In Chisholm, Hugh (ed.). Encyclopædia Britannica. Vol. 10 (11th ed.). Cambridge University Press. pp. 231–232.

Lewis, Christopher (2007). "Chapter 5: Energy and Entropy: The Birth of Thermodynamics". Heat and Thermodynamics: A Historical Perspective. United States of America: Greenwood Press. p. 95.

 

 

quarta-feira, 1 de novembro de 2023

Filosofia, Teoria Mente/ Corpo e o desenvolvimento da Psicologia (Pt. 1)

Introdução

 Neste texto, eu trago a relação histórica da "Teoria Mente/ Corpo" e sua origem na filosofia, com o desenvolvimento da psicologia. 

O psicólogo do desenvolvimento estadunidense, Robert H. Wozniak, em sua obra "Teoria da Mente-Corpo; de René Descartes à William James" afirma que o senso comum, ou seja a visão e/ou opinião popular, percebe uma interação entre mente e corpo. Nossas intenções, decisões, percepções, pensamentos e anseios afetam diretamente nossas ações e nossos corpos. O autor segue afirmando: "Estados do cérebro e do sistema nervoso, por sua vez, geram estados da mente. Infelizmente a noção do senso comum aparentemente envolve uma contradição: O cérebro e o sistema nervoso parecem claramente ser parte do mundo físico: tangível, visível, público e estendido no espaço. Pensamentos, sentimentos, consciência e outros estados da mente se enraízam no tempo, mas não no espaço. 

Esta aparente "contradição" trazida por Wozniak na introdução de seu livro, é "clássica", ou mais precisamente, segue uma tradição européia que se propagou durante a era moderna. Essencialmente trata-se de um argumento em reação aos estudos de René Descartes, que será analisado adiante. (embora também seja possível que anteriormente na história, também houve reação parecida às obras de Platão). 

 Wozniak prossegue com o tema na introdução de seu livro: O cérebro e a mente são de diferentes natureza e se, a lei da causalidade requer causas e efeitos serem de tipos similares (entre si), então é claramente impossível para o cérebro gerar a mente ou mente afetar o cérebro. Então dita, esta contradição constitui metade do problema mente/ corpo - que é relação da mente com o cérebro. Se a distinção entre mente intangível / sem extensão (mas existente, a mente é algo, pois não é científico alegar a não existência...) e corpo tangível/ com extensão (finito, podemos presumir) é mantida, contudo, o problema mente/ corpo também é um problema da mente em relação ao mundo em nosso entorno...

Eis um assunto dos meados do século 17 que ainda hoje é debatido... E (infelizmente) deve ser debatido, até que se chegue numa resposta... Certamente uma resposta universal. Deixando para depois a possível busca da resposta, estas questões de "cosmovisão", ao longo da história tocou a área da filosofia chamada de Ontologia, mas não devem ser confundidas como se fossem meros sinônimos. Isto porquê a cosmovisão além de ser mais intuitiva do que o campo de estudo conhecido como ontologia, ela é uma "visão de mundo" podendo ser influenciada por opiniões, tradições e intenções. A cosmovisão (weltanschauung em alemão) é a forma de um indivíduo entender a realidade como um todo: o que é o espaço, seus corpos celestes, a natureza, o que é possível (de ser, de existir). É um conjunto de ideias e valores individuais ou culturais/ coletivos que podem incorporar conteúdos aprendidos e convicções, servindo como referencial para interações com o mundo, buscas motivacionais, objetivos, interpretações etc. Ao afetar intenções, motivações e objetivos, a cosmovisão naturalmente influencia não só narrativas e ideologias, mas também os pressupostos filosóficos da ciência (na verdade, de qualquer saber) pois relaciona-se com o ponto de partida de qualquer estudo.

Quando a questão da Relação Mente/ Corpo é levada, ou ampliada, para a relação da mente com a realidade exterior, ela indica a relação da filosofia com a ciência, ou, possivelmente como deveria se especular antes do ano de 1834 (quando a palavra cientista começa a ser usada de maneira padronizada), indicava a relação entre metafísica e filosofia natural. Relação esta, a qual frequentemente os "intelectuais" não chegam a um acordo, embora algumas linhas de pensamento se propaguem com maior facilidade do que outras. Tal desacordo será abordado mais adiante. 

Parte 1: As Relações Sócio-Históricas da Filosofia na Era Moderna 

Para compreender a ascensão da filosofia natural (astronomia, física, matemática, medicina, biologia e áreas afins) ante os campos mais "mentais/ espirituais" da filosofia (metafísica, ontologia, ética, epistemologia...), é importante situarmos na história, quando as discussões sobre a teoria da mente se intensificam no ocidente, particularmente na Europa. 

Tais discussões tornam-se notáveis durante o período, ou movimento intelectual, chamado de iluminismo. Sua duração não é consenso: Considera-se como seu início, o período das publicações de René Descartes ou das obras de Isaac Newton, como Principia. Seu término ocorre no período da Revolução Francesa que termina em 1799, embora alguns historiadores considerem que o iluminismo deve perdurar até 1815, com a queda do Império francês de Napoleão e a "Restauração Bourbon" (monarquia parlamentarista). 

Porém, ao se tratar da relação da teoria da mente (Teoria Mente-Corpo ou Teoria Mente-Cérebro), eu devo mostrar o desenvolvimento da filosofia por volta dos anos de 1620 à 1690 nesta 1ª parte do meu texto. Nas próximas partes eu não me limitarei ao iluminismo, mesmo porque a "ciência que trata a mente", ou seja, a psicologia "prática", é mais recente na história. Assim, eu indicarei mais adiante, como a revolução da física (1905-1926) afetou a filosofia, e consequentemente, a ontologia (incluindo a teoria da mente) e a epistemologia. 

Durante o século 17, a época de Descartes, Newton e Locke, a religião (tanto a católica como a protestante) ainda exercia significante influência, e portanto poder, sobre a sociedade. Esta influência que havia diminuído desde a Renascença, quando a filosofia foi "libertada" do domínio da igreja católica por volta da 2ª metade do século 15, ainda foi combatida na época de Descartes, pois o declínio das guerras por motivos religiosos no século 17 (que seriam "substituídos" por motivos econômicos e políticos) só ocorre após os sangrentos conflitos entre católicos e protestantes. Também é importante notar que tais guerras ocorreram por interesses de influência, ou seja, de poder. Os diversos conflitos religiosos da renascença desencadeavam em guerras de interesse de determinados líderes e elites - Apesar de "religiosos", eles estavam mais vinculados às instituições católicas e protestantes, do que à espiritualidade ou à cultura. Afinal as instituições religiosas se tornaram ferramentas de poder ao longo da história e é um fato público e notório que as guerras, sejam elas religiosas ou não, contradizem todo o cerne dos ensinamentos cristãos, que são baseados no perdão e na solidariedade, enfim no amor equitativo ao próximo, a si mesmo e a Deus. 

Sendo assim, fica claro que tais fatos não são meras externalidades em relação à realidade dos intelectuais, pois o acesso aos estudos não era universalizado durante o século 17 (os pobres, ou seja, as massas, em geral não podiam estudar), e a maioria dos filósofos vinham de classes burguesas, aristocráticas, religiosas ou militares. Todas estas classes privilegiadas estavam envolvidas em um nível menor ou maior nos conflitos históricos da transição da renascença ao iluminismo. Embora eu não traga detalhes da vida particular dos filósofos aqui, creio que não seja difícil observar quais dentre eles desenvolviam teorias e estudos mais libertadores, progressistas e universais e quais se alinhavam mais com os interesses de qualquer um dos "3 poderes": religioso (das igrejas), aristocrático (monárquico) e econômico (burguesia, já existente desde a formação dos burgos na baixa idade média). Alinhando-se mais ou menos com quaisquer destes poderes, citarei neste texto, só os que influenciaram ou colaboraram com a construção do conhecimento ao longo da história, particularmente com a construção da psicologia. Embora veremos que ao longo da história, foi impossível separar totalmente a psicologia da cosmovisão, da ontologia, da epistemologia e da neurologia. 

Também é interessante notar que a filosofia tem seu papel no processo histórico, não só com seus campos da ontologia e da epistemologia: Independentemente de quantos defeitos e vieses tivessem as leis, é graças à aplicação de conceitos da ética (campo da filosofia) à sociedade que foi possível desenvolver os sistemas sociais mais democráticos (políticos) que substituíram os mais absolutistas, como as monarquias, por exemplo, a partir do século 18. É verdade que mesmo em seu surgimento, a democracia, seja parlamentarista ou presidencialista, já era cercada por elites econômicas (a classe burguesa) mais ou menos poderosas, conforme a história de cada nação, mas apesar deste fato poder se aproximar da cosmovisão, já é se afastar da teoria mente-corpo. 

Então, a partir deste ponto trago um estudo histórico sobre a filosofia moderna e a Teoria Mente Corpo: Embora talvez seja possível considerar que os filósofos gregos da antiguidade discutissem a relação da mente (alma, psiquê) e corpo, é praticamente na era moderna que a questão é retomada e intensificada. Os estudos do filósofo (matemático e fisiologista) francês, René Descartes (1596-1650), sistematizam tais questões, e, de certo modo, o fazem pai do racionalismo, além de, junto aos estudos de outros filósofos de seu tempo, demarcarem o final da renascença e o início do iluminismo (ambos períodos da era moderna). 

 Estudando desde os 8 anos de idade no colégio jesuíta de La Fléche, Descartes desenvolveu o hábito de meditar sistemicamente durante as manhãs. Seja em uma destas meditações, ou durante o sono, no ano de 1619, ele teve 3 visões ou sonhos e acreditou que um espírito divino lhe revelou uma nova filosofia. Descartes também viu muito claramente que todas as verdades estavam ligadas umas às outras, de modo que encontrar uma verdade fundamental e prosseguir com a lógica abriria o caminho para toda a ciência. De acordo com Wozniak, Descartes foi "afligido" pelo afiado contraste entre a certeza da matemática e a controversa natureza da filosofia (certamente metafísica, ontológica etc), vindo a crer que a filosofia (possivelmente a natural que passaria a ser chamada de ciências, séculos depois) poderia ser levada a produzir resultados tão certos quanto os da matemática. Após este evento, ele formulou a geometria analítica e a ideia de aplicar o método matemático à filosofia. 

Após uma série de viagens e depois de se expor a ambientes com diversos tipos de pessoas, em 1621, Descartes começa a escrever Regras para a Direção do Espírito (publicado décadas depois), onde ele cita etapas essencialmente mentais de uma metodologia investigativa que envolve a intuição, a "não-aceitação de qualquer argumento escutado imediatamente como verdade", a firmeza na decisão, a ininterrupção durante o estudo, a reflexão comparativa, a enumeração etc. Em 1633 Descartes escreve De Homine, cujo ele não publicou por medo da inquisição. Este trabalho publicado após sua morte aborda reações automáticas em resposta aos eventos externos em relação ao corpo. Assim, um fenômeno (como uma chama, por exemplo) poderia afetar os fins periféricos das fibras nervosas que deslocaria o fim central. Com o "fim central deslocado", o espaço interfibroso seria rearranjado e o fluxo do espírito direcionado aos nervos apropriados. Este estudo "pré neurológico" começou a delinear a questão metafísica da relação mente/ corpo, cuja ele trabalharia em Meditações. Em 1637 Descartes publica Discursos Sobre o Método onde continua a trabalhar sua epistemologia, além de trazer a importância da moral, e os argumentos a favor da existência da alma e de Deus. Em 1641 ele publica Meditações sobre a 1ª Filosofia e em 1644, onde argumenta sobre a imortalidade da alma e a existência de Deus. Sua famosa frase "Penso, logo existo" é reforçada no seguinte argumento desta obra: "Eu me convenci de que não há nada no mundo – nem céu, nem terra, nem mentes, nem corpos. Não significa que eu não existo? Não, certamente devo existir se sou eu quem está convencido de alguma coisa. Mas existe um enganador, extremamente poderoso e astuto, cujo objetivo é ver que estou sempre enganado. Mas certamente existo, se estiver enganado. Deixe-o me enganar o máximo que puder, ele nunca fará com que eu não seja nada enquanto eu pensar que sou alguma coisa. Assim, tendo pesado completamente todas as considerações, devo finalmente concluir que a afirmação “Eu sou, eu existo” deve ser verdadeira sempre que eu a afirmar ou considerar mentalmente." A filósofa Christia Mercer, afirma que o argumento de Descartes nesta obra, indica que ele tivera contato com as obras de (Santa) Teresa d'Ávila, que descrevia suas experiências místicas (transcendentais) e defendia a oração mental, consciente e racional, contra a "reza mecânica/ automática", como por exemplo no livro As Moradas da Alma de 1588. 

Em Princípios da Filosofia, publicado em 1644 e dedicado à Elisabeth do Palatinado, o livro expõe os princípios da natureza – Mais notavelmente, estabeleceu o princípio de que, na ausência de forças externas, o movimento de um objeto será uniforme e em linha reta. Newton tomou emprestado este princípio de Descartes e incluiu-o no seu próprio Principia; Nesta e em outras obras, Descartes também critica o filósofo da Grécia clássica, Aristóteles, por causa de sua priorização na experiência sensorial, o que somado à síntese de seu pensamento (penso logo existo) define seu método de construção de conhecimento (epistemologia) racionalista (mais interno, ou seja, psíquico, do que sensorial/ externo). 

Em 1649 Descartes publica Les Passiones (As paixões). De certa forma incitando a psicologia, ele foi um dos primeiros cientistas a acreditar que a alma deveria ser sujeita à investigação científica. Os escritos de Descartes formaram a base para teorias sobre emoções e como as avaliações cognitivas foram traduzidas em processos afetivos. 

A concepção da alma racional trazida por Descartes, como uma entidade distinta do corpo e fazendo contato com este, possivelmente pela glândula pineal, pode ou não tornar-se "consciente" do fluxo diferencial do espírito trazido através do rearranjo dos espaço interfibroso. Ocorrendo esta "consciência", o resultado seria a sensação consciente do corpo afetando a mente. Por sua vez, na ação voluntária, a alma inicia o fluxo diferencial, em outras palavras, a mente também pode afetar o corpo. Esta é a base da visão dualista interacionista da relação mente-corpo, posteriormente chamada de "mente-cérebro", elevada como um dos temas centrais da filosofia a partir da obra de Descartes. Este assunto faz parte da cosmovisão, ou seja, da "visão de mundo" a qual voltarei a mencionar mais adiante.

A visão da relação mente-corpo de Descartes indica que o corpo é caracterizado pelo fato de ter uma extensão e a mente seria puro pensamento. Neste processo de busca pela verdade, talvez paradoxalmente, a reação à sua obra foi de "caos intelectual", como afirma Wozniak. Por fim, para Descartes, a ética era uma ciência, a mais elevada e perfeita delas. Como o resto das ciências, a ética teve suas raízes na metafísica. 

Descartes morreu em 1650, após uma caminhada matinal com a rainha sueca, Christine. A causa de sua morte não é consenso: Fala-se de pneumonia ou até mesmo envenenamento. Embora Descartes declarou-se católico, seus escritos questionadores desafiaram a visão de seus contemporâneos, portanto, as autoridades religiosas consideraram seus livros perigosos. Afinal, indivíduos da igreja que priorizavam os dogmas e/ ou indivíduos que usavam da religião para ganhar poder, provavelmente se incomodaram com a propagação de tantos questionamentos e esclarecimentos feitos pelo filósofo. 

A Reação ao Dualismo Mente-Corpo (Dualismo Cartesiano) 

A história da filosofia após Descartes, decorre permeada por diversas tentativas de escapar do dualismo Cartesiano, que passou a ser considerado um impasse por grande parte dos estudiosos. Isto começa a ocorrer logo na 2ª metade do século 17, seja porque, a partir dos estudos de Descartes, os estudiosos passaram a entender o corpo como algo espacial e a mente como algo incorpóreo, ou porque passaram a entender o corpo espacial, mas a mente temporal, sem conexão entre espaço e tempo, o dualismo mente-corpo foi julgado como insustentável. 

Ao meu ver manter tal opinião foi aceitável até a 1ª década do século 20, mas após a revolução da física e seu respectivo impacto na filosofia claramente explicado por Eddington, tal postura trata-se de desconhecer ou ignorar a história da ciência e suas inter-relações com a filosofia. Explicarei a seguir. 

Esta separação entre tempo e espaço tornou-se questionável desde o desenvolvimento da teoria da relatividade de Albert Einstein elaborada nas duas primeiras décadas do século 20. Einstein, por sua vez, se baseou em estudos de outros, como Fitzgerald e Hermann Minkowsi, este último que tornou-se famoso por sua explicação quadrimensional do espaço-tempo. Quando fala-se de uma realidade quadrimensional, abre-se a possibilidade de questionar as clássicas explicações tridimensionais da realidade, e isto, tanto o divulgador científico, Carl Sagan o faz, como também o astrofísico e filósofo Arthur S. Eddington, faz muito bem em seu livro The Nature of Physical World. Apesar de Sagan explicar de maneira didática e sucinta em um de seus vídeos, recomendo a leitura do livro de Eddington, que relaciona tal explicação com as descobertas de Einstein. Além disto, neste mesmo livro, Eddington explica que tudo o que é percebido por nosso "sistema" sensorial não se refere a uma aparência "real" dos objetos em si. Em um nível atômico dos objetos não há os estados sólido, líquido e gasoso como nosso organismo percebe: Suas partículas são compostas por uma porção ínfima de cargas elétricas separadas por espaços "vazios" proporcionalmente gigantescos, e possivelmente mantidas em uma relação ou sistema através de um campo (eletromagnético). E apesar desta realidade que compõe todas partículas de todos objetos e corpos, nós não os enxergamos nem os tocamos como se fossem minúsculas cargas elétricas meramente espaçadas entre si. Apesar de suas explicações mostrarem o impacto da revolução da física na filosofia, Eddington afirma que tais conclusões são resultados matemáticos e também possuem aplicações práticas. 

Sendo assim, analisemos estas afirmações e questões clássicas: Há uma contradição mesmo? A contradição tradicional (levantada por autores posteriores à René Descartes, ainda na 2ª metade do século 17) é a que Wozniak afirma na introdução de seu livro: (...) "O cérebro e a mente são de diferentes natureza e se, a lei da causalidade requer causas e efeitos serem de tipos similares, então é claramente impossível para o cérebro gerar a mente ou mente afetar o cérebro". Note a certeza das afirmações: "O cérebro e a mente são de diferentes natureza"(...) Esta conclusão deve ser baseada no pensamento da época de Descartes quando não se tinha noção da constituição do átomo (cargas elétricas) nem sabia-se da existência de campos eletromagnéticos. Hoje sabemos que o corpo humano, como qualquer outro corpo na Terra, é composto por átomos, subpartículas e possíveis campos/ ondas eletromagnéticas como mencionei anteriormente. Além disto, células do corpo humano podem reagir a certas ondas eletromagnéticas e tanto os átomos, como os orgãos humanos geram campos eletromagnéticos. A segunda afirmação talvez seja mais contestável do que a primeira: "é claramente impossível para o cérebro gerar a mente ou a mente afetar o corpo". Se tal impossibilidade fosse devido ao fato do cérebro ser um mero órgão corporal, enquanto a mente é algo complexo, coeso e imperceptível sensorialmente e que assim, algo rústico não gera algo mais complexo do que si mesmo, eu poderia concordar com tal impossibilidade. Porém, esta certeza de Wozniak de que o cérebro não pode gerar a mente é baseada numa realidade meramente tridimensional, onde o corpo com sua espacialidade e a mente sem tal característica, não poderiam sequer se relacionar. Esta questão então é aceitável dentro das limitações das descobertas científicas do iluminismo - Um modelo científico que devido a incapacidade de se investigar os níveis sub atômicos da "matéria", a falta do entendimento do que é espaço-tempo e a falta da prova matemática de uma (ou mais) dimensão além das 3 percebidas sensorialmente, não podia aceitar a interação de algo não perceptível pelos sentidos humanos com algo perceptível pelos mesmos. 

Diga-se de passagem, esta regra criada pelos filósofos naturalistas do iluminismo (de que a lei da causalidade requer causas e efeitos serem de tipos similares) faz sentido, mas possivelmente nem levava em conta de que diversas outras formas de vida além do homo sapiens, são capazes de perceber radiações, sons e cheiros que nós não detectamos naturalmente. A partir destes conceitos "iluministas" predominantemente sensoriais antropocêntricos, os filósofos naturalistas dos séculos 17, 18 e 19, criaram uma série de regras sobre os campos da filosofia: Particularmente sobre a ontologia e a epistemologia. Estas regras gradativamente moldaram a ciência tradicional, centrando-se nas propostas de alguns autores que se tornaram mais proeminentes durante a história moderna da filosofia, como Isaac Newton, John Locke e alguns outros posteriores que mencionarei neste texto. 

Eddington, por exemplo, em seu livro The Nature of Physical World, explica que a revolução causada pelas teorias da relatividade e da física quântica, afetaram a filosofia, evidenciando a importância da interpretação (processo cognitivo, subjetivo etc) e da inevitabilidade da inferência não só em toda a ciência, mas como praticamente em toda (vivência d)a realidade. Este impacto refere-se à relação da mente com a percepção e com o mundo externo, que já não é mais puramente e exclusivamente tridimensional. Também refere-se à relação da percepção com qualquer objeto ao seu alcance, que é constituído por átomos e suas respectivas sub-partículas, dos quais só um bilionésimo de sua estrutura é "partícula" (carga elétrica). Além disto, tal impacto refere-se a possibilidade dos campos (eletromagnéticos, ou qualquer outro, não sou físico para detalhar tal assunto) serem mais importantes do que as partículas. Partículas estas, tão priorizadas nos métodos da ciência tradicional, com seu pressuposto/ visão de mundo materialista e sua epistemologia empírica e reducionista (aqui, reducionista é aplicado no sentido de se dividir o objeto de estudo nas menores porções possíveis para realizar possíveis descobertas). 

O dualismo mente-corpo então passa a indicar que ainda falta realizar todo um conjunto de descobertas entre o corpo e mente, seja a mente incorpórea, conectada ao tempo ou seja ela qualquer outra "coisa". "Coisa" esta que não se trata de um conjunto aleatório de elementos, pelo contrário, a mente de qualquer indivíduo tem uma história constituída por relações, uma coerência, uma individualidade e uma complexidade. Tais características indicam que, com toda sua vastidão de elementos (pensamentos, sentimentos, intenções, memórias, intuições etc), a mente não pode ser reduzida - seja qual for o significado atribuído à palavra reduzida: simplificada, limitada, repartida, dividida (etc), tornando óbvio que não pode ser estudada por uma epistemologia puramente empírica, onde exige-se um método de investigação sensorial com reprodução das experiências. Todos estes elementos e processos da mente (pensamentos, sentimentos etc) não são diretamente observáveis pelo sistema sensorial - apenas o indivíduo que os tem, os sente e os trabalha diretamente, mas isto só começará a ser explicado séculos depois de Descartes, com estudiosos como Wilhelm Wundt. 

 Retornando ao início do iluminismo, o filósofo inglês Henry More (1614-1687) rejeitou o dualismo cartesiano pelos seguintes motivos: "Seria mais fácil para mim atribuir matéria e extensão à alma, do que atribuir a uma coisa imaterial a capacidade de mover e ser movido pelo corpo." As suas dificuldades com o dualismo cartesiano surgiram não de uma incapacidade de compreender como as substâncias materiais e imateriais poderiam interagir, mas de uma relutância em aceitar qualquer entidade inextensa como qualquer tipo de entidade real. More continua "... é claro que se uma coisa existe, ela deve ser estendida." Assim, para More, o “espírito” também deve ser ampliado. Isto o levou à ideia de uma 'quarta dimensão' (termo que ele cunhou) em que o espírito se estende (à qual deu o curioso nome de "espissitude essencial") e a uma solução original para o problema mente/ corpo. Aparentemente suas explicações tiveram baixa repercussão na história da filosofia... 

Poucas décadas depois, o sacerdote católico e filósofo francês, Nicolas Malebranche (1638-1715), foi influenciado pelas obras de Descartes, mas não sem fazer críticas divergentes ao "pai do racionalismo". Malebranche nega a dualidade mente-corpo e seu possível "elo" ou "causalidade" entre ambos através da glândula pineal. O autor, talvez devido a sua vida sacerdotal, busca uma resposta em Deus e a resposta para tal dilema da relação entre o corpo "espacial" e a mente "incorpórea" é O próprio Deus, o que deve estar em acordo com a onipresença Dele. Neste ponto, Malebranche afirma que entre corpo e mente há uma correspondência, mas não interação (um não age sobre o outro e/ou não entra em contato). "Co-responder" então deve significar realidades distintas, mas que respondem juntamente, talvez num sentido de paralelismo. 

Uma visão mais duradoura na história da filosofia ocidental foi apresentada pelo filósofo neerlandês Baruch de Espinoza (1632-1677). Devido a suas ideias divergentes do judaísmo, Espinoza, de família portuguesa sefardista refugiada nos Países Baixos, foi expulso da comunidade judaica, como um herege e passou a utilizar os nomes Bento e Benedictus ao invés de Baruch. 

Para manter Deus como a causa verdadeira, sem abandonar a causalidade nas esferas física (corporal) e mental, Espinoza abandona o dualismo interacionista de Descartes, a favor de uma teoria do "aspecto-duplo": O corpo e a mente seriam diferentes aspectos de uma mesma realidade ou substância, esta que seria Deus. Estes argumentos, considerados panteístas, são apresentados em sua principal obra, De Ethica, publicada em 1677 pouco depois de sua morte. 

Outra alternativa ao dualismo Cartesiano, foi o dualismo psicofísico do polímata saxão (germânico) Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716). Corpo e mente não afetam um ao outro, não havendo causalidade entre eles, mas os eventos destas duas realidades se correspondem sem o auxílio de uma terceira entidade. Nas obras Systéme Nuveau de la nature (1695) e Eclaircissement (1696) Leibnz apresentou a articulação de seu paralelismo psicofísico onde ele adaptou uma metáfora ocasionalista (de Malebranche) em uma harmonia pré-existente. Assim, para Leibniz, Deus não interferiria constantemente na lei natural - a harmonia entre corpo e mente teria sido pré-estabelecida no momento da criação. 

Mais respostas ao dualismo cartesiano começam a vir da Inglaterra no final do século 18: John Locke (1632-1704) cresceu em um ambiente liberal dos puritanos, sendo educado na Christ's Church - Oxford. Além de adquirir a fama de um dos pais do liberalismo, tratando os campos de estudos mais relacionados à ontologia e à epistemologia, sua obra Essay Concerning Humane Understanding foi datada em 1690, apesar de escrita em 1689. Nesta obra Locke muda a discussão da Relação Mente/ Corpo ao campo puramente "psicológico" da experiência, mais precisamente, ao campo sensorial, constratando a experiência refletiva da mente (interna) com sua própria experiência das coisas (externa). Enquanto René Descartes e Francis Bacon (1605) levantaram a questão de qual método seria o ideal para construir conhecimento, Locke, de sua perspectiva empiricista, propôs a questão epistemológica dos limites do conhecimento.* Assim, limitando o conhecimento ao método empírico, contrariava-se não só às proposições racionalistas de Descartes, como também começavam as tentativas de limitar o conhecimento às experiências sensorialmente perceptíveis. 

Wozniak explica que Locke, em seu "Ensaio sobre o Entendimento Humano" fez uma distinção entre qualidades primarias e secundárias. As primárias seriam qualidades como a solidez ou extensão e seriam completamente inseparáveis dos corpos nos quais elas são inerentes. As secundárias seriam os poderes inerentes nos objetos para produzir sensações no perceptor, como cor, odor ou som. Estas características em si não seriam inerentes nos objetos. 

O irlandês, George Berkeley (1685-1753), educado no Trinity College de Dublin, afirmou que todas estas qualidades primárias e secundárias citadas por Locke não são inerentes nos objetos em si e sim, em Deus. Wozniak afirma que, apesar de não discutir sua cosmovisão imaterialista em seu 1º livro, Essay Towards a New Teory, Berkeley deixa isso implícito nas demais obras, combinado com uma visão proto-associativa da importância das conexões entre ideias. 

O tratado Um Discurso sobre Obediência Passiva (1712) é considerado a maior contribuição de Berkeley para a filosofia moral e política. Nesta obra, Berkeley defende a tese de que as pessoas têm “o dever moral de observar os preceitos negativos (proibições) da lei, incluindo o dever de não resistir à execução da punição”. exceções a esta declaração moral abrangente, afirmando que não precisamos observar os preceitos de "usurpadores ou mesmo de loucos" e que as pessoas podem obedecer a diferentes autoridades supremas se houver mais de uma reivindicação à autoridade máxima. Berkeley defende esta tese com provas dedutivas decorrentes das leis da natureza. Primeiro, ele estabelece que, porque Deus é perfeitamente bom, o fim para o qual ele ordena aos humanos também deve ser bom, e esse fim não deve beneficiar apenas uma pessoa, mas toda a raça humana. Como esses comandos – ou leis – se praticados, levariam à aptidão geral da humanidade, segue-se que eles podem ser descobertos pela razão correta – por exemplo, a lei de nunca resistir ao poder supremo pode ser derivada da razão porque esta lei é “a única coisa que se interpõe entre nós e a desordem total”. Assim, essas leis podem ser chamadas de leis da natureza, porque são derivadas de Deus – o próprio criador da natureza. "Essas leis da natureza incluem deveres de nunca resistir ao poder supremo, nunca mentir sob juramento, nunca fazer o mal para que o bem possa advir disso (etc...). Pode-se ver a doutrina de Berkeley sobre a obediência passiva como uma espécie de “utilitarismo teológico”, na medida em que afirma que temos o dever de defender um código moral que presumivelmente funciona no sentido de promover o bem da humanidade. No entanto, o conceito de utilitarismo 'comum' é fundamentalmente diferente na medida em que "faz da utilidade o único fundamento da obrigação" - isto é, o utilitarismo está preocupado em saber se ações específicas são moralmente permissíveis em situações específicas, enquanto a doutrina de Berkeley está preocupado em saber se devemos ou não seguir regras morais em toda e qualquer circunstância. Enquanto o utilitarismo do ato pode, por exemplo, justificar um ato moralmente inadmissível à luz da situação específica, a doutrina da Obediência Passiva de Berkeley sustenta que nunca é moralmente permissível não seguir uma regra moral, mesmo quando parece que quebrar essa regra moral pode alcançar os finais mais felizes. Este trabalho parece indicar a importância do(s) valor(es) universal para a sociedade, ou seja, a importância de se por em prática (nas leis, política) o campo filosófico da ética. 

Em sua obra A Treatise Concerning the Principles of Human Knowledge (1710) Berkeley afirma “Não discuto contra a existência de qualquer coisa que possamos apreender, seja pelos sentidos ou pela reflexão. Que as coisas que vejo com os meus olhos e toco com as minhas mãos existem, realmente existem, não faço a menor questão. A única coisa cuja existência negamos é aquilo que os filósofos chamam de matéria ou substância corpórea. E ao fazer isso, não há dano causado ao resto da humanidade, que, ouso dizer, nunca sentirá falta disso". 

Buscando evitar ou "solucionar" o "problema" mente/ corpo, Wozniak diz que foi necessário negar qualquer distinção entre ambos e as teorias que foram negando tal distinção começaram a formar os movimentos filosóficos do monismo. Para o autor, Berkeley é o melhor representante do imaterialismo (possivelmente uma cosmovisão monista mentalista, ou monista espiritualista), pois teria afirmado que aquilo que pensamos que é corpo, é uma percepção da mente. Embora o trecho da obra de Berkeley mencionado acima, possa indicar que para ele os corpos (as coisas) perceptíveis existam, mas suas substâncias, ou materialidade, não. 

Estas "visões" do que é a mente e qual sua relação com o corpo, feitas pelos filósofos, acabaram tocando a questão do "estudo do ser", ou seja, uma questão que pode ser considerada do campo da ontologia. Porém é importante lembrar que tais visões naturalmente integram uma visão geral do filósofo sobre o que existe e o que não existe, ou o que é verdadeiro e o que não é e isto faz parte da já mencionada cosmovisão (Weltanschauung, "visão de mundo", paradigma etc) que pouco difere de uma opinião ou interpretação da realidade. Há um grande perigo em propor uma "visão de mundo" como se fosse um dogma, pois a filosofia não tem a função de impor meras regras, seja para afirmar o que existe ou para alegar que um método de investigação seja verdadeiro e o outro falso. Se há uma visão de mundo que deveria servir de pressuposto de qualquer área do saber, ela deveria fazer jus ao nome cosmovisão e ser aberta, sem afirmar a inexistência de determinados fenômenos.

A minha crítica à Locke aqui foi: Ele propôs limitar qual deve ser o método de investigação, ou seja de construção de conhecimento (epistemologia). Quando na verdade a função da epistemologia, de acordo com Descartes e Bacon, que seguiam a base da filosofia ocidental (Platão), é simplesmente testar e averiguar os métodos, ou seja, estudar os métodos e não impor um método! Ao estudar um método de investigação, descobre-se o melhor para desenvolver um determinado estudo ou grupo de estudos, e este método pode ser bom durante um período longo ou curto até que surjam novos métodos tão bons quanto o anterior, ou melhores do que este. 

*René DesCartes e Francis Bacon não contradiziam a base da filosofia ocidental, como Locke contradisse.

Já a questão "o que é a mente" mostrou que alguns filósofos a entenderam como algo incorpóreo (sem extensão etc) e outros a vincularam ao sistema nervoso (cérebro etc). Isto identifica tal questão como parte de uma "visão de mundo" que toca o campo da ontologia. A ontologia durante esta fase inicial do iluminismo (de Descartes à Locke/ Berkeley) não havia sido elevada ao centro das discussões ainda. Christian Wolff foi um dos filósofos que tentou discutí-la, mas não me aprofundarei em seus argumentos neste texto. Originalmente nas bases da filosofia ocidental, durante a Grécia clássica (510 a.C. - 323 a.C.), "o ontos" (em grego), ou o ser, foi abordado em algumas obras de Platão. Em sua obra Fedon (96 b-e, 97 a-e, 98 a-b), Platão propõe que o professor de ontos deveria apresentar as melhores maneiras das coisas serem. Logo nota-se que a ontologia não afirmava meramente "o que é" e "o que não é". Ela não era um mero pressuposto nem uma visão de mundo e pouco diferia da teleologia (o estudo filosófico da finalidade etc).

Na continuação deste texto mostrarei como os monismos (materialista e mentalista) vão sendo apresentados como verdades absolutas... ou "fatos ontológicos incontestáveis". 

 Bibliografia

WOZNIAK, Robert H., Mind and Body - From Descartes to William James; 1992;

FRANKL, Viktor - A Vontade de Sentido. Ed. Auster;

EDDINGTON, Arthur S. - The Nature of Physical World, 1948 (Electronic Reproduction 2022)

Bruno, Leonard C. (2003) [1999]. Math and mathematicians : the history of math discoveries around the world; Vol. 1. Baker, Lawrence W. Detroit, Mich.: U X L. p. 101

Mercer, C., "Descartes' debt to Teresa of Ávila, or why we should work on women in the history of philosophy" Archived 16 August 2021 at the Wayback Machine, Philosophical Studies 174, 2017

JUNG, Carl Gustav - O Homem e Seus Símbolos, Ed. especial brasileira (6ª), Nova Fronteira 1964;

Henry, John, "Henry More", The Stanford Encyclopedia of Philosophy.

More, H. The Immortality of the Soul. London (4th edition). 1712. For further comments on this idea see Burtt, E.A. The Metaphysical Foundations of Science. London. Routledge & Kegan Paul. 1932 and Smythies, J. The Walls of Plato's Cave. Aldershot, Avebury. 1994

MALEBRANCHE, Nicolas. Conversaciones sobre la Metafísica y la Religión. traducción y estudio preliminar de Pilar Andrade e Ignacio Quintanilla, Madrid, Encuentro, 2006, p. 15

Cooper, John W. (novembro de 2006). Panentheism: The Other God of the Philosophers: From Plato to the Present (em inglês). [S.l.]: Baker Academic

Häyry, Matti. "Passive Obedience and Berkeley's Moral Philosophy." Berkeley Studies 23 (2012): 3–13.

"Berkeley's Theory of Morals". www.ditext.com. Retrieved 27 May 2016.

Downing, Lisa, "George Berkeley", The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Spring 2013 Edition), Edward N. Zalta (ed.). Retrieved 21 August 2013.

Platão, Fedro. Tradução de Edson Bini em Diálogos socráticos III - Edipro.