quarta-feira, 11 de outubro de 2023

A importância das áreas da Filosofia para a Ciência

 1. Como se faz Ciência? Como se constrói conhecimento? - Texto de 16/09/2023

Todo estudo começa de um interesse, interligado a um objetivo ou função. Trata-se de uma intenção que nos move em uma determinada direção. Porém quem estuda? 

Quem tem tal intenção de entender ou descobrir sobre determinado fenômeno ou assunto, é claro. 

Se temos intenção, é preciso assumir que se parte de um ponto, e este ponto é nossa própria intenção. Seja lá o que consideremos a "residência" de tal intenção: a alma, a mente, ou o cérebro... Isto nos empurra para as questões: "O que somos?" O que é nossa intenção? O que é nosso pensamento? O que é mente? É cérebro ou alma? Ou ainda, indo mais longe: O que é ser? O que é existir? 

Com todas estas questões o ser humano ao longo da história esbarrou num campo da filosofia chamado ontologia: Alguns autores, como o filósofo Leo Apostel, limitaram a ontologia como uma área de estudos que serve de base para a ciência, ou pressuposto da ciência - é o que indica nossa percepção do que existe ou "do que é"*. Com isto trata-se a ontologia como sinônimo de visão de mundo, ou em outras palavras, de cosmovisão.

Porque? Porque é o que antecede, ou suporta a busca por conhecimento, ou mais especificamente antecede o método de construção de conhecimento, ou seja, a epistemologia, outra área da filosofia. 

É possível então, notar que as questões ontológicas abordam a teoria da mente, teoria que está por trás de áreas óbvias: Psicologia e psiquiatria e as demais áreas relacionadas diretamente a estas (psicofarmacologia, neurologia etc). As respostas a tais questões irão definir os limites dos estudos

Um limite muito estreito, como considerar apenas a matéria (monismo materialista e similares) e o método empírico (sensorial, reprodutível) pode permitir aprofundamento e especialização, porém abandona uma visão sistêmica abrangente (como da teoria geral dos sistemas), bem como se afasta da interdisciplinaridade e da transdisciplinaridade. Entre os pressupostos ou ontologias abrangentes estão a dualista, e de um modo mais polêmico, a espiritualista - Esta última ontologia abre a possibilidade da psique (mente abstrata, aparelho psíquico etc) reger o corpo e não necessariamente alega que "só existe a mente e que toda matéria é algum tipo de ilusão". Longe disso, esta visão "de mundo" indica a importância e a complexidade da mente humana, além de indicar a possibilidade da existência desta além do corpo (seja sob o nome de psique, espírito etc...) permitindo estudos sobre fenômenos  mediúnicos, espirituais, transcendentais (comumente chamados de "místicos") etc. Esta ontologia difere da materialista, que naturalmente é niilista, pois o monismo materialismo pressupõe uma certeza da não existência da alma... Este materialismo, que inevitavelmente é niilista, insinua e/ ou afirma que todo conteúdo teológico/ religioso/ espiritual é falso e/ ou referente a alguma psicopatologia. Embora possa haver uma "ontologia" mentalista que desconsidere a existência da matéria ou da realidade sensorial, as ontologias dualistas e espiritualistas por sua vez, não afirmam a "não existência" de coisa alguma, pois trabalham com a matéria, mas também considerando a psiquê, seja ela mente, espírito ou ambos. Mesmo porque a postura de classificar a matéria ou a psiquê como inexistente não é científica: A ciência não tem função intencional nem acidental de afirmar a inexistência de forças ou fenômenos. A ciência, como qualquer construção de conhecimento, não tem que negar o que ainda não se conhece, nem deve ser determinista.

Por fim, visões de mundo (ou "ontologias") dualistas ou espiritualistas não apoiam charlatanismo, elas simplesmente têm uma visão que possibilitam mais métodos e mais campos a serem estudados quando comparados a uma visão de mundo materialista. Métodos com rigor, mas também outros métodos além do empirismo "clássico". 

Esclarecer tais áreas da filosofia que formam a ciência é importante para mostrar como a filosofia e seus respectivos campos são importantes e como a psicologia é uma área abrangente que vai além das ontologias materialistas e da epistemologia empírica (este último tema eu devo abordar num próximo texto). 

2. Filosofia para quê? - Texto de 11/10/23 

*Recentemente passei a discordar da parte da explicação abordada acima que iguala ou aproxima muito a cosmovisão da ontologia e passei a preferir me basear nas obras de Viktor Frankl e nos clássicos de Platão. A seguir explico sobre o assunto:

2a. Porque Sócrates e Platão combatiam os sofistas? 

Os sofistas surgiram na "Grécia" clássica pouco depois dos filósofos naturalistas (também chamados de pré-socráticos), possivelmente entre os últimos destes (entre os século 5 a.C e 4 a.C.). Eles devem ter percebido que os questionamentos e críticas dos filósofos naturalistas em relação à mitologia e à religião politeísta popular das pólis helênicas (Grécia), começava a gerar dúvidas nas pessoas - Ao desmentir alguns mitos por exemplo, os filósofos naturalistas ofereciam explicações geralmente físicas e raramente morais, espirituais ou éticas. Além disto, nem sempre tais explicações eram amplamente aceitas, daí surge uma lacuna, ou oportunidade para manipular a opinião pública... Os sofistas então aproveitando do enfraquecimento da religião grega daquela época (o medo da ira dos deuses) viram um "fértil campo" para manipular a opinião alheia e certamente os primeiros sofistas, ou últimos naturalistas, devem ter sido relativistas, como Protágoras (não confundir com Pitágoras), criticado por Platão (e certamente por Sócrates também). 

O termo conversar vem de co - versar (falar junto à, ou virar-se junto à)... De todo modo, a conversa precisa de um ponto de vista em comum e/ ou de um assunto conhecido por ambos / por todos interlocutores para iniciar a conversa; Assim, pode-se perceber que o relativismo não requer uma conversa verdadeira. Relativismo é a centralidade no "argumento" da "relação", geralmente direcionado a um conjunto de fatos e fenômenos, ou generalizado para todos os assuntos. Assim relativiza-se todos os fatos: Um típico "argumento" relativista simples é afirmar "ah, isso é relativo" mesmo sobre fatos universais, sobre fatos comprovados etc. A palavra argumento aqui é usada entre aspas pelo fato de que, em prática, o relativismo geralmente apoia-se principalmente em retórica ou em oratória, não em conteúdos. Isto porque o relativismo é uma postura extrema: O relativista finge-se de tolerante, e pode facilmente utilizar a relativização para distorcer fatos (geralmente a favor de si mesmo ou de um interesse particular), portanto, ao utilizar a retórica, o relativista está tentando manipular a opinião dos interlocutores ou de um público. Esta manipulação no caso da retórica, é feita com jogo de palavras e/ ou descontextualização do assunto em pauta - recortes da realidade para alcançar objetivos particulares, distorcendo, inventando ou omitindo fatos - em suma, o retórico é um mentiroso especialista em persuasão. 

A oratória por sua vez é uma técnica também facilmente utilizada por relativistas - trata-se de usar as emoções em discursos para manipular o público e/ ou para incitar neste, reações desejadas pelo orador. 

O relativismo também fomenta indiferença ilimitadamente: abandona-se busca por verdade pois ao considerar tudo relativo, tudo pode perder a importância facilmente. O relativismo então desvaloriza qualquer assunto, fomenta a o individualismo e a estagnação intelectual e social. Por estas razões, esta (pseudo) ideologia deve ter sido a última dos filósofos naturalistas e primeira entre os sofistas durante a Grécia clássica. 

2b. Campos da Filosofia: Ética, Epistemologia e... Psicologia!

Ao trazer o diálogo construtivo através da maiêutica, a busca pelo saber e pelo "kalos" (a beleza e o bem), Sócrates e Platão trazem a importância da filosofia, da ética e da construção de conhecimento (epistemologia) à sociedade ocidental da antiguidade clássica. 

Mais do que isto, a filosofia socrática/ platônica ao buscar a sabedoria (sofia) e o que é bom e belo (kalos), começa a trazer o olhar para si mesmo em busca das virtudes - não se trata só de ser racional, ou buscar o saber naturalista, mas também de se tornar virtuoso. Assim, Platão indica que a questão do bem não é separável do verdadeiro saber - Em seus escritos, Platão, mostra que Sócrates deu variados exemplos disto em diferentes diálogos: 

 Abordando temas entre auto conhecimento e virtude, Sócrates (e Platão) traz(em) um pouco da questão das emoções, dos sentimentos e da espiritualidade, como nos diálogos Fedro (ou, sobre o Belo), O Banquete (ou, Simpósio) e Eutífron (ou, sobre a Piedade) 

O amor era muito erotizado na Grécia clássica (isto é exemplificado na opinião dos personagens no livro O Banquete) e os dois filósofos tentam mostrar a importância de se buscar algo menos material e menos imediato, mais subjetivo (ou seja, mais humano, mais interior) e mais duradouro. Nestes textos/ diálogos, eles trazem a importância da filia (amizade) que pode ir se expandindo até ser transformada na ágape, um amor mais amplo e certamente mais profundo ou puro. 

Enquanto em Fedro, Sócrates fala da "paixão" divina, que é o amor pelo bem, pela justiça e pela verdade, no Simpósio, Sócrates propõe uma nova forma de amar aos seus interlocutores: Ele conta como aprendeu com uma mestra, que o amor pode e deve ir muito além do erotismo: Após iniciar relacionamentos com a paixão sensual (erótica, sensorial, corporal), é possível desenvolver amizade e valorizar esta. Depois de desenvolver amizade e valorizá-la, torna-se possível expandir esta amizade, buscando gostar não só dos corpos, mas principalmente das psiquês (almas) das pessoas, para enfim, amar as obras humanas, as leis, a justiça, enfim desenvolver um amor mais expansivo. 

Em Eutífron, a superficialidade de certos (tipos) religiosos da Grécia clássica é exposta: Eutífron, um religioso que se considera um tipo de oráculo ou adivinho, tenta utilizar-se de argumentos da mitologia grega para condenar seu próprio pai à morte e Sócrates tenta fazê-lo explicar o que é a piedade. Eutífron "dá voltas e voltas" e acaba fugindo do diálogo e de Sócrates. Apesar do diálogo parecer inconclusivo, é possível notar como Sócrates sutilmente insinua o que é a verdadeira piedade durante o diálogo e expõe a fragilidade de Eutífron, um religioso falastrão e superficial. 

 Por fim, vale lembrar que nem tudo da obra platônica era predominantemente teórico: No texto A República (Politheia), Platão mostra um interesse de por as suas idéias (e as de seu mestre, Sócrates) em prática. Além disto, Platão historicamente tentou difundir e implementar suas ideias entre alguns governantes de seu tempo, independentemente se obteve algum êxito ou não. 

A partir deste breve panorama do "cenário filosófico" grego, é possível ver a importância da filosofia: Ela estuda com empenho áreas como a ética (valores universais e suas possíveis aplicações nas leis e política), a epistemologia (métodos de construção de conhecimento que colaborem com o progresso psíquico e moral da humanidade) e psicologia (sentimentos, emoções, relações afetivas, familiares e sociais). 

 Tudo isto buscando uma prática sem desconsiderar as dimensões culturais e espirituais da humanidade. Esta dimensão espiritual era religiosa num sentido de re-ligar: Seus praticantes, sejam oráculos, poetas e/ ou profetas, buscavam o contato, e portanto algum tipo de (re) ligação, com uma realidade maior e/ ou além da sensorial do ambiente ao seu redor. Sócrates mesmo em sua busca pela sabedoria, admitia "ter um daemon", uma espécie de semi-divindade, mas que também pode ser entendida como espírito incorpóreo, diferente da psique que geralmente referia-se a alma no corpo vivo, encarnada. 

2c. Metafísica e Ontologia para quê? 

O psicólogo existencialista estadunidense, Rollo May, em sua obra, Love and Will (pg 150-153 da versão da Ed. Vozes no Brasil), aborda a questão de uma dimensão do ser humano que não seja meramente racionalista nem puramente ideológica. Ele cita que os mitos e histórias contados por artistas gregos como Ésquilo (524 a.C. - 455 a.C.), tratavam os personagens de modo não impessoal, mas transpessoal, ao considerar tanto a vontade e as decisões do indivíduo como também as forças externas, sejam elas sócio-ambientais ou de um destino mais pautado na crença e/ ou na espiritualidade. May explica que o daemon (que ele chama de demoníaco, no sentido de forças além da vontade individual) na obra de Ésquilo não era o único fator de importância em suas histórias, pois isto seria cair na superstição: o medo superior do divino (super - theos - onis), uma vida baseada no medo do além, onde nada da realidade ambiental/ "material" importa. O daemon também não era algo insignificante, pois isto seria reduzir a realidade dos indivíduos à uma superficialidade, ou seja, seria anular toda profundidade de sentimentos, de força de vontade, de auto-conhecimento, temperança etc. O ser humano, cujo os sentimentos e a vontade não existam, ou cujo sejam aspectos menores e sem importância, torna-se exclusivamente sensorial e Rollo May indica que este caminho solipsista conduz à perda da esperança. May não escreveu isto expressando sua mera opinião: Ele chega nesta conclusão após décadas como terapeuta, e dialogando com outros profissionais, eles foram capazes de enxergar o impacto de fenômenos coletivos (sociais etc) nos indivíduos e a reação dos indivíduos aos fenômenos coletivos*. 

May então explica que Sócrates é o exemplo de indivíduo que não é um mero racionalista: preservou sua autonomia racional porque aceitou seu fundamento em um domínio transracional - Aqui o prefixo trans indica que "vai além de", não se trata de simplesmente "passar para um outro lado". Sócrates triunfou sobre Protágoras e seu relativismo porque acreditava no divino (daemônico), nos sonhos e na oráculo de Delfos. May indica que o fator "demoníaco", bem como os fatores sociais, ambientais, enfim externos, estão em grande parte além da vontade individual. Sócrates não fechou os olhos para quaisquer destes fatores, nem desanimou, seja diante a guerra, diante o "sobrenatural" ou diante seus opositores e suas respectivas acusações. Sua filosofia então mostrou origens dinâmicas que a salvou da aridez (indiferença, rispidez, insensibilidade) do racionalismo, enquanto as crenças de Protágoras falharam porque afirmava que "o homem é a medida de todas as coisas", ignorando forças dinâmicas e forças irracionais da natureza humana. Sócrates então levava em conta todas essas forças, sem ser supersticioso (ou seja, não se baseava no medo, nem considerava que tudo era "divino/ demoníaco", sem importância da decisão e ação humana). 

A linguagem é uma forma de comunicação limitada, pois muitas experiências requerem expressões de sentimentos (emoções), de crenças e de fé, estas que pouco ou nada diferem de símbolos. Os símbolos, por sua vez, fazem parte da cultura, das artes e dos mitos desde a época da Grécia antiga, passando por Platão, por alquimistas medievais até certos grupos mais atuais (sejam esportivos, corporativos, místicos ou de qualquer outra natureza). Sócrates então, não era um pensador insensível nem supersticioso: lidava psicologicamente com questões internas e externas, tomando decisões, como veremos adiante. Ele manteve-se fiel à sua postura filosófica básica para se construir todo e qualquer conhecimento - não aceitava qualquer coisa dita como se fosse uma verdade absoluta, mas mantinha a presunção de ignorância, pois para o filósofo, onde havia dúvida, era possível haver estudo. Além disto, ele sempre considerou o para quê buscar a sabedoria, como é possível ver em Fédon e outros diálogos escritos por Platão: 

"Numa certa ocasião fiquei sabendo de alguém que lera um livro, segundo ele de autoria de Anaxágoras (c. 500-428 a.C.), que é a Inteligência (nous) que estabelece a ordem de todas as coisas e a causa. Vi-me satisfeito com essa causa e a mim pareceu algo acertado ser a inteligência causa de todas as coisas. Refleti que, sendo deste modo, a inteligência ordenadora ordenaria tudo e organizaria cada coisa do melhor modo que lhe conviria. Assim, se fosse desejo de alguém conhecer a causa da geração (vir a ser), da corrupção, ou da existência de uma coisa particular, teria que apurar qual a melhor maneira de essa coisa ser, sofrer ação ou agir. Assim, no tocante a essa coisa particular bem como outras coisas, tudo o que cabe a uma pessoa fazer é examinar o que é o mais excelente e o melhor. Isso fará necessariamente conhecer inclusive o que é pior, uma vez que a ciência de um e outro é idêntica. À medida que refletia nestes tópicos me regozijava em pensar que encontrara em Anaxágoras um professor da causa das coisas que são (tôn onton). 

(...) "Não demorou, meu amigo, para que de mim fosse subtraída aquela maravilhosa esperança e a medida que avancei na leitura percebi que o homem não se serviu da inteligência e não apontou quaisquer causas para a ordenação das coisas, limitando-se a mencionar como causas, o ar, o éter, a água e muitas outras coisas despropositadas" (...)

Assim Sócrates mostra o que seria preciso para um professor de "onto-logia": Apurar qual a melhor maneira das coisas serem. Esta postura, ou conjunto de posturas de Sócrates é epistemológica, ontológica, psicológica, metafísica e ética - não é determinista pois trabalha com a ideia de construção de conhecimento e com melhoria do indivíduo e da sociedade. 

Se a psicologia ou qualquer outra ciência nega qualquer um dos temas e posturas dos fundadores da filosofia ocidental (Sócrates e Platão), quais serão os resultados disto? A ontologia deve simplesmente determinar o que existe e não existe? Ou deve buscar / apurar qual a melhor maneira das coisas serem, sofrerem ação e agirem? Platão (e Sócrates) indicam que a segunda alternativa é a correta.

Uma ciência que reduz, distorce ou nega qualquer uma destes campos da filosofia... é ciência? De quê? Para quê?

Bibliografia 

Parte 1:

DALGALARRONDO, Paulo. Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais. Artmed, 2008. 

https://www.youtube.com/watch?v=UOXrNXr_slo&t=1s acessado em 17/08/2023

Parte 2:

Rollo May, "Eros e Repressão" - Amor e Vontade (tradução de Áurea Brito Weissenberg) Ed. Vozes, 1973; 

Fédon; (tradução de Edson Bini) Platão - Diálogos socráticos III, Edipro 2015; 

O Banquete; (tradução de Edson Bini) Platão - Diálogos socráticos V, Edipro 2015; 

Fedro; (tradução de Edson Bini) Platão - Diálogos socráticos III, Edipro 2015; 

Eutífron; (tradução de André Malta) Platão Apologia de Sócrates precedido de Sobre a Piedade (Eutífron) e seguido de Sobre o Dever (Críton), L&PM Pocket 2008;