sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

A Ciência e o Bem

 

Os Sentimentos e o Bem são desprezíveis? 

Decidi escrever este texto após me lembrar de alguns diálogos com professores do curso de psicologia e de conversas de pessoas debatendo sobre o direito de lucrar contra a responsabilidade social. Os professores aos quais me refiro eram respectivamente de psicologia comportamental e de "ciências neurológicas". 

Resumindo à grosso modo para quem não sabe, a psicologia comportamental (behaviorismo) é uma vertente, ou seja, uma abordagem da psicologia, que lida mais com o presente se comparada com a psicanálise e com a psicologia analítica. Além disto, como ciência, o behaviorismo se apoia mais nos métodos empíricos e racionalistas, enquanto a psicanálise e as abordagens humanistas se apoiam mais em um método fenomenológico.

Pois bem, em uma das aulas, o professor que atuava na área de psicologia comportamental, alegou em tom de deboche, que sentimentos como o amor eram muito subjetivos e portanto menos importantes do que as ações e reações dos indivíduos. Já o professor da área de neurologia, hesitando um pouco, comentou que o amor era apenas uma reação eletroquímica no sistema nervoso. E por fim, as pessoas que debateram a importância do lucro contra a importância da responsabilidade social, talvez pareçam estar abordando um tema totalmente diferente da psicologia, mas na verdade também se trata de se sentir como estão os outros seres. E "sentir", assim como o sentimento, é um objeto de estudo da psicologia, ou ao menos, de algumas abordagens que se dispõem a estudá-lo.

Os sentimentos não são científicos, ao menos, por enquanto. Eles não podem ser medidos nem classificados nos conformes da (ainda débil) ciência humana tão amarrada ao conceito do empirismo desenvolvido há cerca de 3 séculos, e ao materialismo. Portanto benevolência, amor, humildade são tratados como assuntos muito subjetivos pela maioria dos cientistas, céticos, ateus, materialistas… Na verdade estes temas são considerados subjetivos ou secundários até mesmo por muitos dos supostos religiosos e “espiritualizados”.

Platão (428 a.C. - 347 a.C.), o famoso filósofo que viveu na Grécia por volta do século 4 antes de Cristo, alegava a importância de ter o Bem como centro de todas as coisas. A partir disto alegava a importância da razão e busca pela sabedoria e trabalhava sempre com o que é possível, ou seja, a possibilidade de progredir. Platão e seu mestre, Sócrates (470 a.C. - 399 a.C.), são considerados os fundadores da filosofia ocidental, ao menos se desconsiderarmos os poucos fragmentos remanescentes das obras de filósofos anteriores... Se formos considerar tais obras fragmentárias, o título muda para Tales de Mileto (624 a.C. - 546 a.C.)

Resumidamente, os filósofos (amantes do saber, ou seja, aquele que ama o conhecimento) eram os cientistas da antiguidade e Platão (e/ou Sócrates) os idealizou como os indivíduos mais adequados para governarem a sociedade. Portanto todo o conhecimento deveria ser buscado e aplicado para o bem do maior número de pessoas possível. Isto pode parecer “apenas” benevolência, mas na verdade, também é progresso. Então o que deu errado? O que impossibilitou a busca pelo bem e pelo saber situar-se no centro da civilização humana? Possivelmente a mesma coisa que deu errado em outros momentos da história humana. Ao ler A República, livro onde Platão conta como Sócrates idealizava melhorias na sociedade junto a outros indivíduos, nota-se que o filósofo cogitava fazer uma espécie de conversão / revolução nas cidades estado helênicas (gregas) a começar pelas altas classes sociais. O termo revolução aqui refere-se às propostas de Platão para a mudança nas estruturas governamentais. Já o termo conversão refere-se mais às propostas de convencer a aristocracia à valorizar a busca pelo bem (virtude) e a realizarem as funções designadas por suas respectivas classes e cargo/ profissão. Porém, ao lidar com os indivíduos mais poderosos das cidades estado gregas, Platão não conseguiu remover a avareza nem o orgulho destes. Ideias sobre a existência da alma persistir além da morte do corpo e que isto implicaria em recompensas ou penas além da vida material, deviam incomodar os poderosos. Governar pelo próximo e para os outros deve ter incomodado mais ainda. Sócrates que havia começado a fomentar tais ideias em Atenas antes de Platão, sofreu acusações, entre elas, a de corromper a juventude e de impiedade, um tipo de heresia / blasfêmia da época. Por isso acabou condenado a tomar um veneno mortal (sicuta). Aceitando as leis de sua época, Sócrates encarou a morte sem medo, pois sabia que fizera a coisa certa e que nada garantia que sua alma pudesse ser destruída. 

Fica uma questão: Seria a filosofia iniciada por Sócrates e Platão, mais deficiente do que a ciência atual do século 21? Alguma das virtudes defendidas pelos dois filósofos prevaleceu em nossa civilização ocidental alguma vez? A temperança/ moderação, o bom senso, a piedade, a justiça, a verdade, o bem? Parece que não.

 Neutralidade: Ignorância ou mera Opinião. 

Atualmente (mais precisamente a partir desta segunda década do século XXI) estamos vivendo a era das "fake news", um processo que faz parte da "pós verdade", ou seja, a trágica desvalorização dos fatos diante as narrativas. Neste processo surgiram novos governos "populistas" de direita, ou seja, governos que utilizam-se de sensacionalismo, menosprezando as ciências e manipulando os tabus sociais, as tradições (conservadorismo) e os fervores da população, como citei neste outro texto: https://nea-ekklesia.blogspot.com/2020/04/a-corrosao-social-persiste-atraves-das.html

As pessoas dominadas por tabus sociais e/ou tradições em geral não se interessam pela ciência ou não tiveram acesso à ciência. Portanto seus modos de pensar dão espaço à predominância de sentimentos e emoções, tendo pouco espaço para a racionalidade. Independentemente se estes sentimentos e emoções são positivas ou negativas, os governos chamados de populistas aproveitam-se desta característica, assim como as mídias sensacionalistas também o fazem. Estas pessoas “distantes da ciência”, não têm conhecimento sobre política nem sobre sociologia ou geografia e se mantém “neutras” até serem manipuladas. Suas opiniões dificilmente se baseiam em fatos já que são alvos de manipuladores como os mencionados há pouco. 

A Ciência deve ser Neutra? 

Desde a ascensão destes governos entre 2016 e 2018, começou-se a discutir a necessidade da ciência se aproximar do povo. Mas porquê? A resposta ficou mais nítida no ano de 2020: Com a propagação da pandemia do covid-19, variados absurdos vieram à tona, em geral, um negacionismo generalizado da ciência. Isto ocorre porque a ciência que era apenas afastada das classes sociais mais humildes, em geral das massas com difícil acesso à uma renda digna e aos estudos, agora também foi afastada de grande parte das classes médias e altas. Não é teoria infundada, é fato que inúmeros pequenos empresários ficaram em pânico com a ideia de falir e de perder poder aquisitivo por causa das medidas de afastamento social. Esta classe em pânico se agarra às promessas absurdas, negam a letalidade do vírus e acham natural, ou até mesmo lógico, o relaxamento das medidas de afastamento social mesmo com um elevado número de pessoas sendo infectadas. Os mais abastados (multimilionários) também não precisam mais da ciência, pois estão mais preocupados em permanecer no topo da hierarquia sócio econômica. 

Portanto a comunidade científica dominada por uma pseudo racionalidade permaneceu cega sobre alguns fatos óbvios desde o século XX: Não existe sentimento neutro em ser humano algum e portanto não existe pensamento neutro. Não existem expressões dos sentimentos (emoções) neutras e por fim, não existem ações/ comportamentos neutros, pois para existir neutralidade nestes campos não poderiam existir relações, nem intenções, nem opiniões. O que existe são sentimentos positivos e negativos. A partir daí surgem emoções (expressões dos sentimentos) amistosas ou hostis, boas ou más. Existem os pensamentos altruístas e egoístas e o mesmo vale para as atitudes e comportamentos. Para que existisse um pensamento neutro, não poderia existir nada além do pensador: O ser pensante ou pensa priorizando a si mesmo ou pensa priorizando a(s) outra(s) pessoa(s). A indiferença só existe em relação à alguma coisa, pois ninguém pode ser indiferente à nada. Portanto o pensamento "indiferente" é aquele que não se importa com algo (com algum assunto, alguma pessoa, algum grupo etc). Geralmente este tipo de pensamento tende a ser o egoísta, pois é voltado para si mesmo ou prioriza uma minoria. Obviamente esta dualidade é mais nítida nos sentimentos e nas emoções, pois no campo mais "racional" parece ser aceita a suposta neutralidade nos assuntos. 

Então vamos mostrar alguns exemplos da impossibilidade da neutralidade: Descobre-se como construir celulares com internet. O que será feito desta descoberta? Será difundida em algum setor da infraestrutura de um (ou mais) país(es) ou será comercializada visando o lucro de determinada empresa, mais especificamente de seus proprietários / acionistas? Descobre-se a vacina para uma doença mortal que se espalha rapidamente. O que será feito desta descoberta? Será difundida em algum setor da infraestrutura de um (ou mais) país(es) ou será comercializada visando o lucro de determinada empresa, mais especificamente de seus proprietários / acionistas? 

É possível afirmar que os pesquisadores estejam neutros em sua pesquisa? Bom… Esta neutralidade presume que os cientistas que estão pesquisando determinado campo de estudo em busca de descobertas, não tenham a mínima ideia o que será feito com sua possível descoberta. E isso é de uma grande ingenuidade. Será que os cientistas são tão ignorantes em relação ao destino de suas pesquisas / descobertas? 

Ainda assim, a culpa ou responsabilidade não deve ser depositada simplesmente sobre a comunidade científica: Antes de encontrar culpados é necessário deixar claro que não há neutralidade de fato. Um cientista pode ignorar o destino de sua pesquisa por algum tempo, pode ter boa ou má intenção em sua pesquisa, mas o que determinará o destino da descoberta podem ser (e geralmente são) outras pessoas. Geralmente pessoas com poder econômico, político ou ambos. E a decisão final não será feita com neutralidade! O pensamento e/ou a ação (chame do que quiser) final sobre a descoberta científica terá uma preferência em privilegiar uma minoria ou uma maioria de pessoas. E óbvio, que o pensamento dinheiro-cêntrico pensa em favorecer uma minoria, pois se trata de acumular grandes fortunas para poucas pessoas. 

Portanto a “neutralidade”, ou mais precisamente a indiferença, sempre serve a alguém, sempre serve um lado. No caso de uma sociedade, cuja a maioria da população não tem entendimento sobre a função do estado, nem sobre para onde vai o dinheiro num sistema que favorece predominantemente quem tem (muito) mais dinheiro, a tendência é o pensamento indiferente. Indiferente a que? Indiferente a tudo que não seja si mesmo e talvez algumas pessoas próximas, de preferência que não discordem muito de suas ideias. Logo esta indiferença diante as necessidades coletivas serve às minorias mais endinheiradas (eu sei… isto também é óbvio). 

Enfim, creio que seja importante remover esta máscara da neutralidade, não só como possibilidade política ou de opinião pública, mas também em todos os campos da ciência. Removendo a máscara, fica óbvio que existem intenções altruístas e intenções egoístas. Fica claro que existem as decisões e atitudes que visam favorecer poucos e aquelas que visam favorecer a maioria.
E falando em intenções, estas começam na mente humana, não importando se você é um ateu convicto que alega que os sentimentos são apenas reações químicas no cérebro, ou se você é um religioso que alega que tudo começa na alma. Tendo em vista que todas intenções, sentimentos e pensamentos se formam na mente, é natural que a ciência designada a estudar o pensamento, as emoções e o comportamento humano, seja a primeira a abandonar a falácia da neutralidade: A Psicologia deve ser a primeira ciência a posicionar-se contra o interesse de poucos e contra o prejuízo da maioria.