quarta-feira, 20 de abril de 2022

Um olhar crítico sobre o Cientificismo na Psicologia

 

O famoso filósofo do século 18, Immanuel Kant, afirmou: (1989, p. 33), “a psicologia nunca pode ser mais que uma doutrina histórica da natureza do sentido interno e, como tal, tão sistemática quanto possível, ou seja, uma descrição natural da alma, mas nem sequer uma doutrina psicológica experimental”. 
Assim entende-se que a psicologia fazia parte da metafísica, que por sua vez, era um campo da filosofia. De qualquer maneira ainda não havia uso formal da palavra ciência na época de Kant até cerca do ano de 1830 - A "ciência" era a filosofia natural. 
Aproximadamente, desde a última década do século 17, a filosofia se dividia em disputas entre o materialismo e o mentalismo. Tais disputas não se encerraram por completo hoje nem mesmo na ciência, mas é possível entender que as teorias mentalistas, dualistas e pluralistas sofreram duro golpe após as descobertas de Darwin e Wallace no campo da biologia. 
Nesta mesma época surgiu o espiritismo, que de certo modo, buscou explicar fenômenos tidos como sobrenaturais então. Ao lidar com inteligências não perceptíveis pelos 5 sentidos humanos, o espiritismo não utilizou pressupostos materialistas nem uma ontologia monista como base para seus estudos. Além disto, o método utilizado para pesquisas espíritas praticamente não poderia ser o empírico, afinal seus objetos de estudo ou eram fenômenos que surgiam e desapareciam independentemente da vontade do observador ou aconteciam apenas no interior (psíquico, emocional) do indivíduo observado. Esta foi a razão para seus estudiosos utilizarem o termo estudos psicológicos em suas publicações. Obviamente o espiritismo foi rechaçado pela maioria dos cientistas do século 19, afinal a ciência já era predominantemente dominada pelo positivismo que invocava o materialismo e o empirismo como verdades absolutas: 
Para quem não sabe, o positivismo é uma teoria filosófica empirista que sustenta que todo conhecimento genuíno é verdadeiro por definição ou positivo – significando fatos a posteriori derivados pela razão e pela lógica da experiência sensorial. 

Cerca de 4 décadas depois da publicação das obras de biologia de Darwin e Wallace e das obras espíritas de Kardec, no fim do século 19, o psiquiatra austríaco Sigmund Freud, juntamente com Breuer, observou que as pessoas recalcavam (reprimiam) sentimentos e pensamentos diante uma situação conflitante ou de difícil aceitação, seja por vergonha, medo, nojo ou sentimentos similares. A partir daí ele desenvolveu a teoria da psicanálise alicerçada sobre os conceitos do inconsciente e do consciente da psíque humana. A palavra psique, originalmente significa alma e passou a ser sinônimo de aparelho psíquico, ou seja, a mente em uma linguagem mais popular. 
O inconsciente seria a parcela mais profunda da mente, onde residem os instintos e onde ficam conteúdos mentais esquecidos ou fortemente reprimidos. Já o consciente é a parcela ativa do aparelho psíquico que age basicamente no presente pensando e percebendo. Por fim, o pré-consciente seria um meio termo entre inconsciente e consciente, onde ficam as memórias que podem ser resgatadas/ relembradas sem grandes dificuldades. 
Em sua época, a ciência estava tão dominada pelo pensamento materialista, que a maioria dos estudiosos consideravam problemas psicológicos, ou seja emocionais, (como o que eles chamavam de histeria no século 19), como problemas biológicos/ neurológicos. Freud desmentiu tais argumentos e separou o fator genético do conflito psicológico / moral; Freud afirmou que as representações recalcadas são deformadas: O desejo e a lembrança/ representação recalcada, de certa forma aparecem no sintoma observado. A partir daí Freud afirma o seguinte sobre a histeria: “podemos sintetizar os conhecimentos até agora adquiridos na seguinte fórmula: os histéricos sofrem de reminiscências. Seus sintomas são resíduos e símbolos mnêmicos de experiências especiais (traumáticas).” 
Este enfrentamento acidental ou proposital do materialismo viria a ser uma das principais razões das críticas aos estudos de Freud. Afinal, a psicanálise não se apoiou nos pressupostos naturalistas: Ao afirmar a existência do inconsciente, do pré-consciente e de seus respectivos elementos, a psicanálise nega a teoria existencial (ontológica) de que apenas a matéria perceptível pelos 5 sentidos humanos é real (o monismo materialista). Isto também faz com que o método empírico seja questionado: Afinal não se pode perceber os processos internos do "objeto" de estudo (paciente/ cliente). O que se percebe nos estudos e na psicoterapia são suas falas e suas emoções (sentimentos que podem ou não ser escolhidos antes de exteriorizados por expressões faciais, tom de voz, gestos etc). Não se pode reproduzir os fenômenos estudados no paciente a bel prazer do observador: O estudioso não tem controle absoluto sobre o paciente pois não percebe pensamentos e sentimentos (não exteriorizados). Ainda assim, por mais que a psicanálise pareça se apoiar numa base existencial dualista (de mente "imaterial" e corpo "material" interagindo entre si), Freud centrou seus estudos em questões relacionadas aos comportamentos mais biológicos: A sexualidade, a libido e as pulsões de vida e de morte. Por isso, Freud não chega a aprofundar a interferência dos fatores sociais sobre a psique humana, muito menos questões espirituais e religiosas. Isto seria feito por Adler e por Jung, seus dissidentes. 
 É possível entender que Freud foi revolucionário, ao iniciar os estudos sobre questões tão ignoradas e/ ou escondidas pela sociedade de seu tempo. Ele lançou as bases para seus dissidentes mencionados aqui e influenciou até mesmo estudiosos como Aaron Beck, tido como expoente de uma frente da psicologia que usa como estrutura de seus estudos a ontologia monista materialista e o método empírico. Esta frente da psicologia é o behaviorismo (comportamentalismo) e um de seus fundadores foi o psicólogo estadunidense John Watson. Watson afirmava que a psicologia deveria estudar apenas os comportamentos observáveis (excluindo pensamentos e sentimentos não expressos), o que permitia a possibilidade de seus estudos admitirem que existe algo além da matéria perceptível pelos 5 sentidos. (não há consenso se o pressuposto dos estudos de Watson é monista ou dualista). 
Anos mais tarde, o psicólogo behaviorista, Skinner, assume que deve-se estudar os processos internos da mente, mas utiliza o termo comportamento para definí-los. 
Esta "frente de estudos psicológicos" de Watson e Skinner (behaviorismo) se apoiou consideravelmente nos estudos do fisiologista russo Ivan P. Pavlov, que certamente utilizava a ontologia (ou base, pressuposto, chame do que quiser) monista materialista e o método empírico, afinal era um estudioso que realizava experimentos nas glândulas salivares de cães e crianças "de orfanato". Tal conjunto de pressuposto e método serve muito bem a este campo de estudos biológicos, mas será que é prático e esclarecedor usá-lo para estudar a mente humana e todas suas complexidades? Analistas do comportamento como Skinner certamente afirmavam que sim, mas é de se duvidar que Aaron Beck pensasse assim, afinal o criador da Terapia Cognitivo Comportamental (TCC), ignorou a base monista defendida por Skinner e passou a considerar e estudar processos internos da mente humana como a interpretação, os pensamentos e as crenças. Assim, a TCC, rompe com a Análise do Comportamento e outras bases e abordagens do Behaviorismo, estranhamente se aproximando da frente psicanalítica da psicologia. Talvez mais estranho ainda, seja a aproximação entre a TCC e a medicina, particularmente a psiquiatria. A psiquiatria como uma especialização da medicina deveria se apoiar nas mesmas bases e métodos da Análise do Comportamento, mas talvez por um fator histórico e de alguns interesses, acabou se alinhando mais com a TCC. 
Eu poderia buscar fontes que indicam que a psiquiatria frequentemente foi utilizada como mera forma de controle das sociedades, mas isso renderia outro texto, então deixo tal assunto como uma possibilidade futura de ser trazida ao blog. 
Enfim, falar de cada uma das frentes da psicologia renderia um texto colossal, mas o resumo desta história é que o cientificismo surgiu e desde então, ficou presente no meio acadêmico de maneira mais intensa ou menos intensa. 
O cientificismo é a tendência intelectual ou concepção filosófica de matriz positivista que afirma uma superioridade da ciência sobre todas as outras formas de compreensão humana da realidade (religião, filosofia, metafísica, etc.), por ser a única capaz de apresentar benefícios práticos (utilitarismo) e alcançar rigor cognitivo. Assim, prega o uso do método científico, (o empírico que é adequado à base filosófica monista materialista, ou seja, adequado aos estudos objetivos) tal como é aplicado às ciências naturais, em todas as áreas do saber (filosofia, ciências humanas, artes etc). 

A preocupação social com a psique humana só começou a crescer a nível global só após o período industrial do fordismo e após a 2ª guerra mundial. A pressão feita pelo discurso pró produtividade e pró consumo cresceu de maneira vertiginosa após a segunda guerra e isso tornou comum os empregos em fábricas com sistemas de produção que priorizavam quantidade acima do bem-estar do ser humano, e às vezes acima até mesmo da qualidade dos produtos. Obviamente isto tinha propósito: o lucro das maiores empresas capazes de maiores linhas de produção. Irrompe então nos anos 60 uma série de movimentos sociais e estudantis pelo mundo: África do Sul, França e EUA são apenas alguns destes pontos que protagonizaram tais eventos da sociedade: Movimentos antirracistas, feministas, anti capitalistas, anti imperialistas, hippies - discursos a favor da paz e do amor, discursos a favor da liberação da utilização de psicoativos etc. Até mesmo novos movimentos esotéricos e espiritualistas surgem em meados do século 20. 
Tudo isto já indicava que o materialismo (seja como argumento científico ou, mais desregulamente, como estilo de vida) falhou em tornar a civilização melhor, mais empática, mais pacífica e portanto mais verdadeiramente progressista. Isto já havia sido previsto por Sócrates, por Platão, por Pestalozzi, por Kardec, por Kierkegaard e tantos outros estudiosos, sejam filósofos, pedagogos ou de outras áreas do saber. Infelizmente parece que estes autores não são suficientemente rigorosos para os cientistas e acabam sendo relegados a uma condição mais periférica de humanistas, como se humanizar fosse algo supérfluo ou de pouca importância. 
 
Fenomenologia: Uma possível visão mais plural e unificadora dos saberes

Há cerca de um século, a fenomenologia questionou os pressupostos da ciência empírica, ou seja, os pressupostos filosóficos naturalistas/ "visões de mundo" materialistas e monistas. Este questionamento mostrou que já é um mero viés por si só, considerar verdadeiro ou digno de estudo somente o que se percebe com algum dos 5 sentidos e o que pode ser reproduzido de maneira controlada pelo observador (cientista). Isto não invalida a epistemologia dominante da ciência como um todo: A ciência baseada em tais pressupostos (naturalistas/ materialistas) e centrada no método empírico foi é ainda é proveitosa à humanidade, mas é preciso entender que tais estudos objetivos são mais precisos quando aplicados aos fenômenos e objetos diretamente perceptíveis pelos 5 sentidos humanos. 

Estudar o comportamento humano requer levar em consideração os processos internos, como os pensamentos e sentimentos, que não podem ser percebidos diretamente pelo "observador". Este simples fato já indica a importância de outros métodos de estudo que não sejam empíricos. 

Além disto estes processos internos do "objeto" não podem (e nem devem) ser controlados pelo estudioso em questão (não há reprodutibilidade na prática psicoterapêutica). Tais processos são o que compõem o aparelho psíquico na frente psicanalítica de estudos ou a essência do ser humano na fenomenologia. 

Com este breve resumo destaco a importância da fenomenologia não só na psicologia, mas também como um conjunto pressuposto-método (uma epistemologia) de construção de conhecimento. Por sua vez, a epistemologia mais objetiva, resumidamente tida como o método científico em si, ao lidar com o ser humano analisa as expressões do objeto: Suas emoções e sua comunicação, seja verbal ou de outra maneira. Ela pode não exercer um controle direto ou absoluto sobre o objeto, mas pode induzí-lo. Se tratando de saúde mental, logicamente esta indução deve buscar e priorizar o bem-estar do objeto (paciente). 

Tal importância da fenomenologia mostra também que é possível buscar conhecimento, seja sobre soluções para a existência humana, ou a busca pela(s) verdade(s), de maneira mais plural, indo além do monismo e do materialismo, dando abertura a outras formas de entender a existência (a cosmovisão, os pressupostos) e outros métodos de estudo (reflexões, comparações etc). Isto é importante também porque é preciso respeitar as áreas do saber, sejam elas científicas, filosóficas ou espirituais/ religiosas. 

A fenomenologia apresenta um método (a eidética) e uma base filosófica aberta, sem pressupostos pré-determinados, ou seja, sem determinar um modelo ontológico particular. A questão que se faz então é a seguinte: Apresentando um método coeso, capaz de resolver questões da existência humana, ela é uma ciência? Se sim, o método científico já não se limita mais ao método empírico alicerçado no monismo materialista (ou monismos similares ao materialista) - teria que levar em conta estudos dualistas, espiritualistas etc, não os relegando à filosofia. Se não for ciência, ela é filosofia? Se for este último, não é urgente o desenvolvimento e a divulgação de tais estudos? A filosofia então abrangeria diversas áreas do saber humano, tidas até então como "ciências" humanas: Sociologia, geografia, história, antropologia, psicologia, contabilidade, economia, direito etc.

As áreas de estudo que pesquisam assuntos como os efeitos psicossomáticos no corpo humano e as possíveis psicopatias ("transtornos e doenças mentais") estariam então mais próximas das ciências biológicas como a neurologia, a psiquiatria, a psicopatologia e a psicofarmacologia, fazendo uma possível conexão com a psicologia. 

Sobre investigações mais Plurais, certamente é importante estabelecer um parâmetro: O que se busca com tais estudos? Tais questões já foram feitas ao longo da história da civilização humana então não se trata de um segredo inalcançável. Ao ressaltar que o materialismo, apesar de sua utilidade, não fornece todos os meios de se alcançar o progresso, muito menos fornece soluções para todos os problemas da humanidade, nos resta a retomar alguns temas já discutidos por filósofos da antiguidade clássica: Toda busca pelo conhecimento e pela verdade, deve ser feita levando em consideração a busca pelo bem. Apesar de parecer abstrato ou até mesmo utópico e inalcançável, esta busca pelo bem, se trata sim, de uma busca pelo bem maior, no sentido amplo, ou seja, coletivo, e no sentido profundo, ou seja, mais individual. Esta amplitude e profundidade, apesar de diferentes, não são contrárias em si, pois fazem parte da busca pela coexistência pacífica dos indivíduos desde os primórdios da humanidade. 

Ademais já tratei da importância destes objetivos unificados à ciência em alguns textos meus: 

 https://nea-ekklesia.blogspot.com/2021/02/a-ciencia-e-o-bem.html 

 https://nea-ekklesia.blogspot.com/2022/03/o-desenvolvimento-do-ser-humano-sob.html 

 https://nea-ekklesia.blogspot.com/2022/01/os-fundamentos-do-saber.html 

 https://nea-ekklesia.blogspot.com/2021/12/espiritualidade-e-progresso.html