sábado, 26 de março de 2022

O Desenvolvimento do Ser Humano sob Óptica de diferentes Estudos

 

Neste texto trago alguns trechos e comparações breves das obras de estudiosos que analisaram o estado de desenvolvimento do ser humano. Este estado se refere ao modo de pensar, aprender e agir do ser humano, sendo tema da psicologia, da pedagogia e talvez da ontologia (pelo fato de se aproximar da teoria da mente e de uma "visão do ser"). Embora o principal autor abordado aqui seja o pedagogo e reformador suíço, Johan Heinrich Pestalozzi, um dos principais responsáveis pela reforma educacional na Europa (que de certa forma, garantiu acesso universal à educação em seu país de origem), também tratarei resumidamente de obras de psicólogos e filósofos. 

O estado de desenvolvimento da raça humana abordado por Pestalozzi, muito tem a ver com a psicologia (o estudo da alma, da mente ou do comportamento) e com a filosofia, principalmente no campo da ontologia (o estudo do existir e do modo de existir). Esta é mais uma prova que a psicologia é inseparável da filosofia: Os 3 estados descritos por Pestalozzi foram observados em seus estudos sobre pedagogia e têm certas semelhanças com os 3 estágios (de existência) percebidos pelo filósofo dinamarquês Soren Kierkegaard. Este último, em algum nível se inspirou nas obras clássicas do filósofo Platão e de seu respectivo professor, Sócrates. 

 Embora os estudos sobre comportamentos, estados psíquicos e de desenvolvimento sejam feitos em determinadas épocas, estes autores conseguiram reunir observações de características significantemente atemporais do ser humano. 

Na psicologia este tema aparece como 3 estados psíquicos/ comportamentais/ existenciais e são observados e pesquisados separadamente e respectivamente por estudiosos austríacos: Sigmund Freud, Alfred Adler e Viktor Frankl. 

 


 

Estado natural/ Estágio estético 

O ser humano nesse estado é predominantemente dominado pelos instintos de sobrevivência. Em linhas gerais, isto o conduz simples e inocentemente para a satisfação dos sentidos. 

O psiquiatra austríaco e fundador da psicanálise, Freud, centralizou sua teoria nesta condição do aparelho psíquico: O Id, sendo o responsável pela liberação da libido do inconsciente (a "energia psíquica" por trás das pulsões de vida e de morte) para o consciente, seria regulado pelo Ego. Na psicanálise de Freud, o Ego seria o meio termo entre o Id e o Super-Ego (o autocontrole excessivo, a vergonha e a obediência geralmente produzidas diante as regras sociais, costumes, tradições e normas da civilização). 

O modelo onde é descrito o estado natural do desenvolvimento humano é proposto por Pestalozzi e tem similaridades com o que Sócrates (de acordo com Platão) chamava de estado inferior da mente, ou simplesmente de mente apetitiva (epithymetikon)- aquela que está constantemente em busca de satisfazer seus apetites e prazeres mais rústicos.

No caso de Platão, é possível entender que, ao longo de sua obra, o filósofo classificou os prazeres na seguinte ordem crescente, do mais rústico/ animalesco (talvez pareça polêmico hoje, no século 21) ao mais sublime ou sutil: 

Prazeres sexuais (erotikós, afrodísion) - possivelmente prazeres predominantemente centrados no tato; 

Prazeres da alimentação - relacionados principalmente ao sabor, portanto ao paladar (talvez, em algum nível, ao olfato também); 

Prazeres da audição - principalmente o ato de ouvir músicas, melodias; 

Prazeres da visão - admiração das cores, formas, esculturas, paisagens etc. 

Platão ainda cita a possibilidade de prazeres inferiores e superiores mais relacionados à psique, além dos relacionados ao corpo (portanto aos sensoriais): Prazer em causar dor e/ou sofrimento seriam os "mais inferiores", os prazeres em ajudar o próximo seriam "mais superiores" e devem ser citados nos próximos estados. 

O 1º estágio descrito por Kierkegaard é o estético e não se encontra distante deste "estado natural" do desenvolvimento humano descrito por Pestalozzi. Talvez seja vagamente mais refinado, ou ao menos, um pouco mais amplo, já que a estética pode se referir também aos prazeres mais sutis do que a maioria daqueles referentes ao tato. 

Kierkegaard explica que neste estágio de existência há uma angústia diante as dificuldades físicas e espirituais encontradas na vida e que isto tende a levar a pessoa a se ocupar com a busca por prazeres sensoriais, a estética. Assim, é possível entender que a preocupação é satisfeita por experimentações sensoriais, talvez abrangendo desde prazeres dos atos sexuais, passando pelo saborear de alimentos, pelas conversações e flertes até a apreciação das artes (musicais e visuais). 

Estado social/ Estágio ético 

Para Pestalozzi o homem como espécie, como povo não se submete ao poder como ser moral, nem tampouco entra na sociedade e na cidadania para servir a Deus ou amar ao próximo. Ele entra na sociedade e no estado de cidadania para tornar sua vida mais alegre e para gozar tudo o que seu ser animal e sensorial tem que gozar e para que seus dias sobre a terra transcorram satisfeitos e tranquilos. Assim, de acordo com o pedagogo, o direito social não seria um direito moral, mas apenas uma modificação do direito animal. Isto reflete sua vivência, pois Pestalozzi iniciou sua carreira de reformador na política, onde certamente se decepcionou e desistiu, tornando-se um "fazendeiro" por 10 anos. 

Kierkegaard tem uma visão um pouco mais positiva ao classificar o estágio ético como evolução do estágio estético: No estágio ético, o ser abandona seus prazeres e gostos pessoais por haver encontrado nas leis da moral e da conduta universais um patamar melhor para sua existência. A pessoa que entra no estágio ético, compreende que as leis, ainda que de forma um tanto abstrata em sua concepção, são mecanismos que restringem o comportamento humano e que podem ser um guia na racionalidade. 

O poder descrito por Pestalozzi, seria ao menos em parte, as leis descritas por Kierkgaard. Tal criação social exige comportamentos para que as pessoas coexistam em (relativa) paz, mas não pode exigir um homem moral, ou seja, não penetra os pensamentos e sentimentos, modificando-lhe para mais justo ou mais solidário. O poder da civilização na Terra só pode exigir do ser humano, pois para servir a humanidade (como um servo), o poder (ou as leis) teriam que ser mais do que uma convenção, um mero conjunto de representações a ser interpretado. Para servir, o poder deve ser alguém, pois necessita de intenção e/ou empatia. Propriedade, lucro, profissão, autoridade, leis acabam sendo meios artificiais para satisfazerem a natureza animal pela escassez (ou supressão) dos impulsos mais animalescos. Kierkgaard, com certa semelhança à Sócrates, alega que as leis (o poder) emergentes do estágio ético não são feitas apenas para substituir a escassez de impulsos animalescos, mas que como estágio funciona como uma mola propulsora: Os indivíduos tendem a avançar ao 3º estágio (o religioso que certamente seria denominado de estágio espiritual após o século 20, pois Kierkegaard era crítico do luteranismo já institucionalizado de seu tempo e local) ou a regredir ao 1º estágio, o estético, na busca por satisfazerem meros desejos sensoriais. 

Embora Platão não classifique o estágio intermediário da mente como social nem como ético, quando comparamos suas explicações sobre os prazeres sensoriais, com suas concepções de mente (inferior, estado de repouso/ intermediário e superior), é possível entender que os prazeres em se buscar o bem e fazer o bem ao próximo se iniciem (nem que seja de maneira tímida ou formativa) neste estado de repouso e se desenvolvem/ expandem no estágio superior da mente. 

Na psicologia, Alfred Adler centra sua teoria nesta condição mais social e/ou ética do aparelho psíquico. Embora, durante os anos iniciais de sua teorização, o psicólogo austríaco foi severamente criticado por enfatizar pulsões egoístas, como o desejo de poder, o sentimento de inferioridade e a busca por compensação, em 1939, Adler ampliou sua concepção dos humanos para incluir fatores de interesse social. Assim, passou a enfatizar o self criativo como elemento principal do aparelho psíquico, capaz de criar metas e os meios para atingir tais metas. Fatores hereditários e ambientais colaboram com a construção das metas. O ser humano é capaz de buscar uma superioridade em harmonia com o próximo, de caráter mais coletivo/ social. 

 Estado moral / Estágio religioso (espiritual) 

Pestalozzi alega o seguinte em suas obras: "se eu alcançar na minha condição e na profissão tudo o que eu posso alcançar, se minha felicidade está garantida pelo direito, estaria eu então satisfeito no meu íntimo? (…) Deveria pensar que sim, mas não é verdade". O pedagogo afirma que o direito social e o estado social não satisfazem completamente o ser humano, pois isso seria limitar a vida à formação civil e aos meros prazeres sensual e animal. Na alma dos indivíduos ainda haveriam desconfiança, sinuosidade e intranqüilidade, que nenhum direito social pode desfazer. 

Limitar o ser humano a um animal em seu nascimento, não possibilita o objetivo da perfeição desde a origem da vida. Pestalozzi viu o interior do ser (subjetivo, psíquico, sentimental), em sua natureza, como divino, não apenas material. Ele faz as seguintes reflexões sobre o desenvolvimento humano: 

"Logo vi que as circunstâncias fazem o homem, mas vi também que o homem faz as circunstâncias, tem uma força em si mesmo que pode conduzir de várias maneiras, segundo sua vontade. (…)

Como obra da natureza, sinto-me livre no mundo para fazer o que me agrada e me sinto no direito de fazer o que me serve. 

Como obra da espécie, sinto-me no mundo atado a relações e contratos, fazendo e suportando o que essas relações me prescrevem como dever. 

Como obra de mim mesmo, sinto-me livre do egoísmo da minha natureza animal e das minhas relações sociais, e ao mesmo tempo no direito e no dever de fazer o que me santifica e o que santifica o meu ambiente.(…) 

Como obra da natureza, sou um animal perfeito. Como obra de mim mesmo, esforço-me pela perfeição. Como obra da espécie, procuro me tranqüilizar num ponto sobre o qual a perfeição de mim mesmo não é possível. 

A natureza fez a sua obra inteira, assim também faze a tua. 

Reconhece-te a ti mesmo e constrói a obra do teu enobrecimento sobre a consciência profunda de tua natureza animal, mas também com a consciência completa da tua força interior de viver divinamente no meio dos laços da carne. 

Quem quer que tu sejas, acharás nesse caminho um meio de trazer tua natureza em harmonia contigo mesmo. Queres porém fazer tua obra apenas pela metade, quando a natureza fez a dela inteira? Queres estacionar no degrau intermediário entre tua natureza animal e tua natureza moral, sobre o qual não é possível o acabamento de ti mesmo? – Então não te espantes de que serás um costureiro, um sapateiro, um amolador ou um príncipe, mas não serás um homem." 

Enfim, Pestalozzi conclui que os direitos e propriedades da sociedade repousam apenas nos estados natural e social do ser humano, ignorando sua natureza moral. 

Kiekegaard diz que o segundo estágio, o ético, não é definitivo na vida do ser. O ser humano sente culpa e peso de sempre estar avaliando os próprios atos e pensamentos se colocando em uma posição de decisão na qual ou volta ao primeiro estágio, o estético; ou migra para o terceiro, o religioso. 

Como Platão explica, se a pessoa não busca as virtudes, a verdade e o bem maior, ela volta a buscar prazeres sensoriais e/ ou mesquinhos. Ela necessita mais: ou busca na matéria, maior quantidade ou intensidade de satisfação, ou busca o bem maior nos processos internos da mente, nos sentimentos, na espiritualidade. 

Kierkegaard explica que essa transição para o religioso é difícil e dolorosa, assim muitas das vezes, a pessoa adere ao que lhe parece mais confortável e fácil, retornando ao primeiro estágio, o estético. Porque, para se garantir o alcance definitivo do estágio religioso, a pessoa necessita se comprometer com a própria fé e nunca duvidar ou retornar ao ponto de partida, o primeiro estágio. A crença em um Deus vivo e forte, não somente em uma imagem ou pensamento, mas um Deus supremo e no qual o Amor é representado de forma íntegra, o único caminho, a Verdade suprema. Uma compreensão que muitas vezes fere o próprio ego, mas que ao ser atingida no estágio religioso, serve de guia a uma existência engrandecedora e verdadeira. 

Na psicologia, Viktor Frankl foi quem se aprofundou neste estado da mente humana. Sua vivência nos campos de concentração da 2ª Guerra Mundial, permitiram que, mais tarde, ele desenvolvesse sua teoria fenomenológica da psicologia - a Logoterapia. Seus estudos indicaram que os indivíduos que se agarravam a um sentido de vida transcendente, ou seja, para além de si mesmos, em busca de um sentido em amar outra pessoa (mesmo não presente), em se dedicar a uma fé, religião, ou mesmo, uma atividade para além de si mesmo, eram os que mais suportavam as privações biopsicossociais daquele ambiente. Algumas destas pessoas nos campos de concentração, entre elas, o próprio Frankl teve percepções vívidas de entidades amáveis, que certamente seriam consideradas meras alucinações por materialistas mais radicais. Porém estas percepções fizeram parte do processo de sobrevivência, superação e esperança, pelo qual estes prisioneiros passaram priorizando o "entregar-se interiormente à pessoa amada" (o autor alega "tanto faz se é real ou não a sua presença"). Enfim, tanto Kierkegaard como Frankl sofreram críticas no meio acadêmico, sendo considerados religiosos "demais". 

Para concluir este texto, valem as seguintes constatações: Os autores mencionados fizeram grandes descobertas capazes de auxiliar no desenvolvimento da humanidade. É uma pena que suas colaborações ainda não sejam amplamente apreciadas entre cientistas atuais, nem totalmente aplicadas para o progresso da humanidade. As obras de vários dos autores mencionados aqui indicam um caminho não só de busca pela verdade, mas de solidariedade e de esperança e não caminhos de egoísmo ou de indiferença. Não há paz enquanto houver indiferença. Falta de paz é guerra e guerra é a propagação de destruição e medo. 

Fontes:

 Minhas indagações sobre a marcha da natureza no desenvolvimento da espécie humana, Pestalozzi em 1797, (traduzido do original alemão Meine Nachforschungen über den Gang der Natur in der Entwicklung des Menschengeschlechts);

 FRANKL, Viktor E., Em Busca de Sentido. LeLivros, 1984. 

Platão, A República 559a - 559d

Platão, Diálogos III - Fedro 250b - 250d; Edipro

Platão, Diálogos IV - Filebo 46c - 51c; Edipro

Platão, Diálogos II - Hípias Maior 297e - 299e; Edipro