quinta-feira, 21 de maio de 2020

Política não é piada, política é morte


Decidi iniciar este post com a foto do esqueleto da rinoceronte Cacareco, baixada de reportagem do G1. Cacareco foi eleita vereadora por voto de protesto em 1959. Morreu com 8 anos de idade em 1962 (a expectativa de vida de um rinoceronte branco é no mínimo cinco vezes isso).

Eu ia colocar a foto de Cacareco viva mas troquei por esta para enfatizar o título. Política não é morte na verdade, é vida ou morte. Novamente, escolhi morte no título para ser enfático, afinal estamos no meio de uma pandemia que causou no Brasil, em números oficiais, mais de 19000 mortes até este dia 21 de maio de 2020. 19000 em números oficiais, sabemos que é mais que isso. Futuramente poderemos calcular os números de pessoas que morrem anualmente e vai ser muito fácil fazer a conta.

É como se enchêssemos o estádio do Criciúma em Santa Catarina e fizéssemos essas pessoas tomarem veneno e morrer (uma boa analogia dado o novo protocolo sobre Cloroquina). Um estádio lotado de mortos. E não estamos no pico da pandemia ainda.

Essas pessoas tem nome. O pai de uma ex-colega de serviço minha. O jovem colega de um amigo meu da faculdade. A culpa é da doença? Obviamente que sim, mas não só dela. As escolhas que tomamos tem consequências. Outra relação óbvia: quanto mais poder você detém, mais consequências derivam de suas ações.

A pandemia apenas deixou isso escancarado. Quando um presidente fala abobrinhas sobre desinfetantes e luz solar, por sua posição, o impacto é muito maior do que o do seu tio na reunião de família. Esta nem é a parte mais importante do impacto. A parte mais importante são as políticas adotadas.

Cada decisão política adotada incide em vidas afetadas. Cada verba destinada (e sua porcentagem desviada) define curas, doenças, mortes, inanição.

Em 1990, a decisão de bloquear as poupanças teve um impacto enorme na população brasileira. Você pode imaginar o impacto daquilo na saúde mental da população (assunto seríssimo). A neoliberal Isto É, fez uma matéria criticando o evento ao mesmo tempo que tentava defender políticas neoliberais, e citou sem fontes "...mortes, suicídio e desemprego".

O G1 também se dedicou ao assunto no aniversário de 20 anos do Plano Collor ao publicar uma matéria da BBC em março deste ano que cita sem dados estatísticos, com base em relatos, infartos, suicídios e prostituição como consequências daquela política. Ao ler, fica enfatizado o amadorismo e incompetência dos envolvidos (algo escandalosamente visível na equipe de governo de hoje).

Fernando Collor foi o candidato sem sentido apoiado com fervor por todos que tinham pânico de testemunhar Lula presidente (logicamente, qualquer pessoa detentora de poder econômico). Todas as cartas jogadas naquela eleição foram as mesmas jogadas na eleição de Bolsonaro. A diferença é que a eleição de Bolsonaro conseguiu ser mais suja e de violência escancarada. Nada escondeu o discurso fascista durante toda a corrida eleitoral ("metralhar a petralhada", etc.) e os esforços de tirar seu único concorrente da jogada.

O medo de Lula na época (1990) era o principal motivador de apostar em qualquer outra insanidade (como Collor). Medo do comunismo, fruto da propaganda em massa desde a Guerra Fria. Como somos quintal dos E.U.A., a propaganda que vingou aqui foi essa, se fossemos quintal da U.R.S.S., vingaria outra propaganda.

O medo só pôde ser trocado por ódio (ele já existia antes, mas não havia sido disseminado pela imprensa pois faltava um componente) e repulsa quando a podridão do sistema político foi escancarada através do PT. Pessoas muito ingênuas poderiam classificar como coincidência a retomada de uma agenda neoliberal (menos estado, meritocracia, visão empresarial de decisões fiscais na gestão estatal) e a mudança de regras nos leilões do Pré-sal. Outros enxergam como o objetivo por trás de se escancarar as vísceras do sistema político do Brasil capitalista.

Quanto mais essas vísceras são expostas, mais repulsa e indignação influem nas votações. Há um consenso popular de que o brasileiro faz piada de tudo, isso certamente condiz com Cacareco, Tiririca e Enéas. Quando o voto de protesto ocorre em cargos com menos poder, os danos são menores. O maior problema nas votações para esses cargos é na verdade a ignorância e a indiferença. Ignorância por ignorar as atribuições e importância do cargo, bem como o histórico e proposta do candidato. Indiferença derivada da ignorância, "quem manda é prefeito/governador/presidente".

Qual a diferença entre Enéas e Bolsonaro? Com certeza o intelecto conta, algo como comparar um cientista e o macaco que ele usa em testes. Enéas também sempre manteve a coerência em seus discursos nacionalistas, ao contrário da infinidade de atos patéticos de Bolsonaro em relação aos E.U.A. Mas a principal diferença foi a exposição das vísceras citadas anteriormente. O que resultou no PSDB afundando em uma velocidade menor que a do PT, mas ainda sim afundando, e no apoio relutante da parcela menos insana da classe média e alta a Bolsonaro (algo que Enéas nunca teve).

A piada deriva da indiferença. Para você fazer piada com algo que realmente machuca, você tem que ser diferenciado (ou profissional). É muito mais fácil fazer piada com algo que você não se importa. A indiferença deriva de várias coisas. Uma delas é enxergar uma situação em que você não tem controle. Ou enxergar cada vez mais que esse controle é ilusório.

Bem-vindo à democracia representativa capitalista. Bem-vindo também à realidade de um país periférico. A democracia representativa capitalista representa quem? Você. Mas em uma constante queda de braço entre você, obrigado a trabalhar para viver, e daqueles que vivem do seu trabalho (os capitalistas). "Ah, mas sem os capitalistas não haveria emprego!"
"Ah, mas sem a infraestrutura que o capitalista montou, não produziríamos qualquer coisa!"

Não vou entrar nessa discussão, discuta consigo mesmo para ver se consegue se convencer do contrário (é um ótimo exercício). Indiferente a essa discussão, a queda de braço ainda existe, os interesses não são os mesmos. Isso é o que os comunistas chamam de luta de classes, mas é irrelevante levantar o conceito agora. Essa queda de braço em quem vai ser representado pelo político é uma disputa muito simples: dinheiro X organização de pessoas.

Organizações de pessoas procuram fazer 'propaganda' do que você quer, como cidadão trabalhador, e de que é possível atingir objetivos lutando por seus direitos.

Dá muito trabalho. Estamos em uma democracia representativa, por que além de escolher meu representante eu ainda tenho que lutar para que ele faça que eu quero? Porque você não tem dinheiro. Essa é a parte 'capitalista' da democracia representativa.

A realidade de um país periférico é ainda pior. Os representantes que você escolheu e ainda tem que lutar para que eles façam o que interessa para você, são derrubados (são 114 até hoje). Nós estamos discutindo aqui os limites da democracia representativa e a importância da política, mas boa parte desses países entram em ditaduras.

Mas pense, para o indivíduo que já diz 'e daí?' na hora de votar, muitas vezes é até cômodo dentro da mente preguiçosa dessa pessoa, imaginar os benefícios de uma ditadura militar: "Eu não vou ter que votar mais, não adiantava nada mesmo. E os militares devem ser organizados, por causa da hierarquia e tal."

Nem vou entrar no âmbito do mito que militar não é corrupto, porque é patético. Eu já ouvi essas ideias sobre a ditadura ser uma opção, verbalizadas por colegas meus, então não se trata de fantasia minha.

Se os impactos de políticas tomadas em democracias representativas já causam mortes com toda contestação possível dentro de uma sociedade 'livre' (imprensa, processos jurídicos movidos por MP e organizações sociais, etc.), imagine em uma ditadura.

Eu, sinceramente, não consigo entender como alguém acredita que outra pessoa possa tomar uma decisão em seu lugar de forma arbitrária. É isso o que acontece em uma ditadura: decisão tomada, cale a boca (o "cala a boca" já está na moda novamente).

Toda essa quantidade inútil de palavras que escrevi até aqui foi para enfatizar que política e voto não são piada. Enquanto piadas são feitas e votos são queimados, pessoas morrem. Não se trata aqui da lei natural, porque uma vez que passamos a controlar parcialmente a lei natural, é nossa responsabilidade prezar pela maior quantidade de vidas possível (se descobrimos curas, por que deixar pessoas morrerem? Se produzimos comida suficiente, por que deixar pessoas morrerem de fome? Se conhecemos as áreas de risco da natureza, por que deixar pessoas em risco?).

Sim, a democracia representativa capitalista é extremamente limitada, mas dar as costas a vidas humanas até em um ato de mínimo esforço, que é votar na opção menos ruim, é uma falta de responsabilidade. Não é porque canalhice e falta de responsabilidade abundam que devemos abandonar até mesmo nossos esforços mínimos.

Enquanto esse sistema falho, onde os representantes são guiados por lobistas e ganância, não é derrubado, a responsabilidade cai em nossas mãos na forma de organização e voto. O voto é a parte mais fácil dela. Você pode manter a esperança de que a tecnologia chegue ao ponto de nos proporcionar uma democracia participativa ou mesmo que organizações sociais tomem o poder, ou não manter esperança alguma. Ainda assim, a responsabilidade cai sobre nós.


Termino o texto invertendo totalmente o propósito da frase do conservador Edmund Burke,
uma citação bem conhecida, e com certeza, usada por muita gente canalha, mas aqui, a visão do mal triunfar é clara: o dinheiro fica acima das vidas humanas.

"Para que o mal triunfe basta que os bons fiquem de braços cruzados."

Se a frase é criada com propósito torpe, ela pode ser tomada, assim como tudo o que foi construído, e dirigida para um propósito mais nobre.