quarta-feira, 4 de dezembro de 2019

Ética, profissionais de ética, e sociedade


A imagem acima mostra duas provas da disciplina de Ética e Responsabilidade Profissional, do curso de Análise e Desenvolvimento de Sistemas da Fatec-SP. As letras das alternativas escolhidas como resposta por mim estão à esquerda, as letras das alternativas "corretas", segundo a professora, estão à direita. "Poxa Lucas, você foi mal hein?"

Verdade, mas há um fator importante aí, essas provas são idênticas, fui reprovado da primeira vez que cursei a disciplina e quando fiz pela segunda vez, a professora aplicou a mesma prova. "Piorou! Você deveria ter ido bem melhor na segunda vez!" Poderia afirmar um incauto. E eu seria forçado a responder: Você deixou passar algo. Se as provas são as mesmas, como o gabarito pode ser diferente?

Não vou nem discutir aqui a metodologia de avaliação baseada em um maldito caderninho que deveria ser acrescido, aula após aula, de resumos de parágrafos e mais parágrafos da Constituição Federal, Código Civil, etc. O tal do caderninho é baseado no que é ensinado por um professor falecido chamado Pierluigi Piazzi, figura um tanto peculiar que afirma que Vigotsky, Piaget e Paulo Freire não produziam ciência de verdade, mas sim achismo. Se você duvida do que eu escrevi, trechos deste vídeo (https://www.youtube.com/watch?v=z2xX0HkAfII aos 53 minutos) se proliferam pela internet, graças aos esforços de direitistas malucos. Não vou desqualificar o trabalho do tal professor, mesmo que ele desqualifique o dos outros, mas quero reforçar a postura autoritária, reacionária (no sentido daquele velho pensamento: "antigamente era muito melhor", o que pode ter razão parcial, claro, mas no caso das escolas antigas que são exaltadas no vídeo, quantas pessoas tinham acesso?) e megalomaníaca deste senhor.

Por quê quis ressaltar a postura deste senhor? Porque se assemelha à postura da professora da disciplina citada. De maneira muito mais branda, é verdade. Há certa temperança em seu comportamento no geral. Durante o semestre ela faz suas aulas expositivas e tira as dúvidas, após a correção das provas, ela muda a nota se um erro de correção é apresentado, enfim, age aparentemente dentro do comportamento esperado. O comportamento é ainda mais esperado quando se trata de uma professora de ética.

Porém, como já foi apontado, o gabarito é fruto do caos. Mais: quando fiz a prova substitutiva, sem entregar o caderno, a correção da prova foi abismal. Havia tantos erros na correção, que comecei a citá-los e ela começou a negar um a um, alegando que eu estava errado. Ela ainda indagou "Você não entregou o caderninho?". Deixando claro que ela reprovava de qualquer maneira quem não o entregasse (com uma metodologia, mal explicada para algumas turmas, em que a entrega do caderno somava dois pontos na média e a não-entrega SUBTRAÍA dois pontos na média, restava conseguir 8 na média das provas para passar com 6 na média. Algo que, com gabarito aleatório e correções enviezadas e apressadas, fica perto do impossível). Era aí que o viés autoritário aparecia, incompatível com qualquer ética.

A p1 era dividida em duas partes, alternativa e dissertativa. Era um show encenado. A parte de alternativas parecia uma prova de concurso de direito, exigindo uma 'decoreba' em nível épico, algo que não era passado em aula e que nunca havia sido dito que seria cobrado. A parte dissertativa era corrigida de forma mais branda, quando entregava as notas baixas da sala, ela dizia que a p2 seria totalmente dissertativa porque a turma foi melhor neste trecho. Mas a correção da p2 era mais bruta, sua nota era 'canibalizada' em cada questão pelo menor detalhe que "faltasse", para forçar a necessidade dos dois pontos oriundos do caderno.

Todo esse comportamento apontava que o gabarito inexistia. Não importava, porque ninguém saberia a resposta correta das alternativas se não mergulhasse a fundo nos diversos códigos recheados de 'juridiquês', toda essa encenação era irrelevante, bastava entregar o maldito caderninho e conseguir uma média 4. Lembra toda a encenação que certo juiz perpetrou recentemente devastando o meio político brasileiro e por consequência, a economia.

Para completar, a formação dessa professora era de bióloga e advogada. A aula era de Ética, que, tem muito a ver com legislação, mas na verdade era uma aula pura de legislação travestida de ética pelos vídeos de profissionais que abordam ética, que eram passados no fim das aulas. Ou seja, ela dava aula do que sabia, não do que deveria.

Tudo isto foi dito para explicitar o comportamento de uma professora de Ética. Mas não vamos parar por aqui. Os vídeos passados em aula eram sempre de Cortella, Karnal ou Clóvis, membros do atual Big Four de filósofos/acadêmicos popstar (adicione o Pondé à lista - embora eu prefira o Safatle, e sim, fiz uma alusão ao Big Four usado para nomear as supostas maiores bandas de thrash metal do mundo). Eu sempre me divirto vendo os vídeos do Clóvis, afinal, ele fala uma montanha de palavrões e aparenta ser o mais esquerdista de todos. Mas no fundo, no fundo, a mensagem dele é "se não gosta do seu emprego, saia, e ache outro". É algo muito bonito, mas com severas limitações nas sociedades em que vivemos, e se isso é passível de uma longa discussão, toda a ideia de ética que é passada nessas palestras e vídeos também é, porque estão entrelaçadas com todos os conflitos de nossas sociedades.

É claro que os filósofos/acadêmicos citados incitam justamente isso, uma discussão contínua da ética. Porém, as discussões da ética que abundam pelos meios de comunicação, principalmente as que surgem do Big 4 e do meio empresarial, dificilmente chegam em um ponto visceral importantíssimo: a quebra brusca do status quo.

Sim, porque a discussão é quase banal se isso não acontecer. Nossas sociedades bárbaras travestidas de democracias afundam mais um pouco dia após dia. Para quem realmente controla o poder no mundo, Karnal e companhia podem discutir e fomentar discussões nesse nível do raio que o for, pouco importa, as estruturas que os mantém estão lá, qualquer barbarismo necessário para mantê-las irá acontecer sem qualquer remorso. Basta ver a repressão brutal que ocorre hoje mesmo, em boa parte da América do Sul, às manifestações que surgiram, não de forma absolutamente consciente, contra os poderosos.

Karnal é um dos que deixa claro sua postura dissociada desse embate de forças (Pondé eu nem preciso citar, não?), no último vídeo que vi (https://www.youtube.com/watch?v=hPsqmVC1pMU), uma entrevista realizada pelo youtuber Cauê Moura, Karnal se declarou de centro. Isso certamente deve ter deixado mais esclarecido quem havia se abismado com isto:


A foto, que correu as mídias sociais como um meme virulento, foi tirada antes que a Vaza Jato começasse, mas a pergunta paira no plano Astral: Iria Karnal, hoje, tirar e postar essa foto publicamente? Talvez não, mas talvez sim. Veja, mesmo com figuras de centro/direita como Reinaldo de Azevedo batendo de frente com a bizarra Lava-Jato, é possível notar uma gigantesca condescendência da mídia e daqueles com poder de palavra na sociedade, para com Moro e seus asseclas.

Como isso pode ocorrer? É uma discussão para lá de longa. Basta dizer que ao redor de Lula foi construída uma imagem de supervilão fortíssima, baseada em sua suposta (suposta porque, por mais ridículo que possa parecer, ninguém provou nada de verdade) corrupção. Então, Moro, ao combater esse supervilão (por meios que, os referidos preferem usar uma venda nos olhos para não ver, também são corruptos), passa a ser super-herói, e não do tipo mutante, apedrejado, mas do tipo Vingador, aclamado. E a corrupção está ligada a quê? À ética, claro.

A ética é algo importante, afinal, trata-se da melhor maneira possível de convívio entre os membros de uma sociedade. Mas no cenário atual ela serve para quê? Ela serve como um daqueles selos de 'empresa amiga do meio-ambiente', basta que a mesma contrate um popstar da ética para fazer uma palestra e publique seu próprio manual de ética. Se vai pagar salários decentes ou explorar os trabalhadores até o talo, tanto faz.

Serve para construir heróis nacionais e manipular massas. Serve para desqualificar a violência, mesmo que essa seja oriunda daquele que não tem mais recurso algum para utilizar. Serve para se ganhar muito dinheiro e fama, e do alto de sua cadeira, enxergar de maneira 'naturalista' aqueles que rastejam por migalhas. Serve para defender um tal de estado democrático de direito, quando ele mal existe e nunca irá existir plenamente sem a ruptura do status quo. Serve para 'demonizar' a polarização e exaltar o centrismo travestido de ponderância, afirmando que a sociedade ideal deve ser construída pouco a pouco sem romper as estruturas de poder. Diga-me, você vê isso acontecendo no futuro? Vê uma alternativa pacífica de redistribuição de poder mundial? Eu gostaria muito que existisse, quem em sã consciência deseja guerra e derramamento de sangue? Mas a verdade é que é quase impossível, e digo quase apenas para ser otimista.

Karnal disse ter problemas com pessoas que matam, no vídeo citado. É compreensível, eu também tenho, é um dos atos mais relevantes sob o viés da ética, porque encerra a vida de outro e elimina totalmente a discussão do convívio. Ele diz isso, porém, ao se referir a Che Guevara.

Che Guevara para mim, até meus 39 anos de idade, era uma figura completamente desconhecida. Só o via em camisetas (muitas delas, vestidas pelos playboys 'revolucionários' da faculdade em que eu estudava, os quais incitavam em mim forte aversão). Talvez eu nem soubesse que era argentino e pensasse que era cubano, não me lembro. Isso mudou durante minha visita a Cuba, onde fui 'forçado' a 'conhecê-lo'.

Retornei de lá com a lendária nota de 3 pesos que portava o monumento a Che na frente e uma cena da tomada do trem blindado no verso. Ao mostrar para um amigo, o mesmo disse, "bem legal, por mim eu só tirava o Che. Estuprador f&*(#@#!"
Aquilo me deixou curioso, seria Che Guevara estuprador? Vasculhei a internet e além da opinião de direitistas malucos, encontrei uma matéria da Veja (uma matéria de direitistas malucos).


Graças à essa matéria, descobri que o autor do livro que foi usado como base, repudiou a revista, dizendo algo como: "Eu escrevi este livro justamente para contrapor as visões heróicas ou vilanescas que existem de Che."

Era o que eu queria, neutralidade pura não existe, e é fácil de notar os julgamentos que esse mesmo autor faz sobre Che durante sua escrita. Mas não era um fanático esquerdista ou direitista escrevendo.
Li então 'Che Guevara - Uma biografia', do estadunidense, Jon Lee Anderson (já adianto que não achei nada sobre estupro).


É baseado nessa leitura que agora surge a dúvida: Karnal tem problemas com Che, mas qual Che? Afinal, somos pessoas diferentes, parecidas, mas diferentes, durante o decorrer de toda nossa vida, porque mudamos. Gosto de pensar que existiram vários Lucas antes de mim, e espero que existam vários outros à frente.

Não pode estar relacionado aos Ches que foram racistas, homofóbicos ou machistas no decorrer de sua vida (se nos dias de hoje, é raro encontrar alguém que nunca o foi, imagine naquela época). Não, Karnal foi específico, ele tem problemas com o Che 'asesino' (como Che teve que ouvir muitas vezes em sua vida). Seria o Che asesino que matou durante a revolução cubana? Seria o Che asesino de espiões e traidores? Seria o Che asesino do paredón (ou malecón?)?

Em todas as situações, Che se comportava seguindo uma lógica de preto e branco que era respaldada pelo tempo-espaço em que estava. Uma revolução derruba um sistema, portanto as leis inexistem, são construídas durante a revolução. Em dado momento, Fidel teve que definir o que era punível de morte em seu exército. Fidel aliás, era muito mais brando do que Che.

O que fazer com inimigos capturados quando não há prisões? Soltá-los e correr o risco de que sua posição seja descoberta e você seja morto? Fidel fez isso várias vezes. Você já se imaginou nessa situação? Eu gosto de pensar que eu sempre optaria por prisões, mas é ingenuidade acreditar que seria possível.

Será que Karnal defenderia manter a ditadura de Batista? Manter Cuba como um capacho dos E.U.A.? Como o paraíso de criminosos? Não é impossível, visto que na entrevista ele brinca sobre preferir a monarquia à revolução francesa. Então ele não escolheria ativamente talvez, mas passivamente. É o que faz quando afirma que a grande maioria da população é centrista, que não se preocupa com o que não a afeta no cotidiano.

Bem, o nosso cotidiano é afetado o tempo todo pelas estruturas de poder. Pode não ser claramente perceptível essa escravidão moderna, e é totalmente admissível para quem não possui acesso à instrução ser centrista. Mas eu não consigo mais admirar essa intelectualidade 'isentona', não consigo ver como admissível você adquirir níveis cavalares de conhecimento e discursar de maneira velada a favor do status quo.

A ética para ser real tem que passar pela redistribuição de poder dos homens. Não é admissível se defender ética em regimes controlados pelo poder (isso inclui o stalinismo), pois ela é vazia. Para defender a ética verdadeira é preciso defender uma quebra total do status quo e sugerir novos meios de se produzir e viver em sociedade. Desse ponto de vista, Jacque Fresco tinha muito mais cacife para falar de ética do que Leandro Karnal.