terça-feira, 2 de maio de 2017

Reflexão sobre tecnologia e sociedade

Meu professor de Sociedade e Tecnologia propôs que escrevêssemos um texto sobre sociedade e tecnologia embasado nos conceitos vistos em aula, sobre a seguinte reportagem:

Vai comprar roupa no Natal? Veja se sua loja favorita combate a escravidão



16/12/2016 



Leonardo Sakamoto







O ''Moda Livre'', aplicativo para consumo consciente de roupas, acaba de passar por uma nova atualização a tempo de ajudar os compradores neste Natal. Foram incorporadas 27 novas marcas e lojas à ferramenta, incluindo importantes nomes internacionais que produzem no Brasil, como as grifes Levi's e Calvin Klein, a Forever 21, além das esportivas Nike, Puma, Adidas e Reebok e marcas brasileiras relevantes como Farm e Animale (do Grupo Soma) e TNG, Osklen e Cavalera. Redes de lojas populares, como a Besni e o magazine Torra Torra, também foram incluídas.

Com a nova atualização, o App passa a contar com 101 grifes e varejistas em sua base de dados. Desde o seu lançamento, em dezembro de 2013, pela ONG Repórter Brasil, ela já teve mais de 50 mil downloads.
O Moda Livre avalia e monitora as ações que as principais empresas do setor vêm tomando para evitar que as suas peças produzidas no Brasil sejam contaminadas por mão de obra escrava. Além disso, oferece ao consumidor notícias sobre casos de escravidão contemporânea na cadeia de valor do vestuário nacional.
Faça o download gratuito do aplicativo para iOS (iPhone) e Android 
 Trabalhadores produzindo peças para oficina responsabilizada por trabalho escravo (Foto: MPT/Divulgação)
Trabalhadores produzindo peças para oficina responsabilizada por trabalho escravo (Foto: MPT/Divulgação)
A Repórter Brasil convida todas as companhias a responder a um questionário-padrão que avalia basicamente três indicadores: 1) Políticas – compromissos assumidos pelas empresas para combater o trabalho escravo em sua cadeia de fornecimento; 2) Monitoramento – medidas adotadas pelas empresas para fiscalizar seus fornecedores de roupa; 3) Transparência – ações tomadas pelas empresas para comunicar a seus clientes o que vêm fazendo para monitorar fornecedores e combater o trabalho escravo; 4) Histórico – resumo do envolvimento das empresas em casos de trabalho escravo, segundo dados das autoridades competentes.
O histórico da marca ou da loja também é avaliado de acordo com pesquisa junto ao Ministério do Trabalho e do Ministério Público do Trabalho a fim de verificar o envolvimento em casos de trabalho escravo.
As respostas geram uma pontuação e, com base nela, as empresas são classificadas de acordo com o que vem fazendo para combater a escravidão em três categorias de cores: verde, amarelo e vermelho. As empresas que não respondem ao questionário são automaticamente colocadas na vermelha porque equivale a obter pontuação zero no questionário.
O Moda Livre não recomenda que o consumidor compre ou deixe de comprar roupas de determinada marca. Apenas fornece informação para que faça a escolha de forma consciente. O aplicativo é fruto da apuração da equipe de jornalismo da Repórter Brasil e do design e desenvolvimento da agência PiU Comunica.
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Os escravos da moda – Nos últimos anos, centenas de trabalhadores – principalmente imigrantes de outros países sul americanos – foram resgatados produzindo roupas em situação análoga à de escravidão dentro de pequenas e precárias oficinas de costura brasileiras. A região metropolitana de São Paulo (SP) concentra a maior parte dos casos  já flagrados por auditores fiscais do Ministério do Trabalho e procuradores do Ministério Público do Trabalho.
Quase sempre estas oficinas são empreendimentos terceirizados, que, não raro, produzem para grifes de renome. Há também flagrantes de trabalho escravo associados a pequenos varejistas instalados em importantes polos comerciais de roupas, como o bairro paulistano do Bom Retiro.


Pois bem, baseado nesta reportagem, segue o texto elaborado:

Não há como pensar a sociedade brasileira atual de maneira dissociada à tecnologia, essa é também, uma realidade mundial.

Uma tentativa desse tipo, seria equivalente a analisar o período pós-crise de 29 no Brasil, de maneira dissociada à industrialização, ou a colonização brasileira de maneira dissociada à agricultura.

Isso porque, esses modos de produção, e suas mudanças, são o cerne das mudanças da própria sociedade. Ou, como Toffler nomeia, essas grandes ondas de mudanças, seriam: a Primeira Onda, a revolução agrícola, que levou milhares de anos para se esgotar; a Segunda Onda, o advento da civilização industrial, que durou  apenas cem anos; e a Terceira Onda, ainda mais acelerada do que a segunda, e que altera nossa sociedade hoje, neste exato momento.

Essa Terceira Onda, segundo Toffler, traz consigo uma maneira de vida genuinamente nova baseada em fontes de energia diversificadas, renováveis; em métodos de produção que tornam a maioria das linhas de montagem das fábricas obsoletas; em famílias novas, não-nucleares; em uma nova instituição que poderíamos chamar de "casa eletrônica"; em escolas e corporações do futuro radicalmente modificadas.

É possível adicionar algumas características importantes à essa Terceira Onda, talvez menos inspiradoras que as citadas por Toffler: preponderância do capital financeiro sobre o produtivo, disseminação de mentiras pela web (ou, a era da pós-verdade), superexposição do indivíduo via digital (e suas consequências de julgamentos morais e bullying permanente), guerra midiática exacerbada (podendo servir de preparação para uma intervenção espacial), etc.

Essa sociedade, no meio da Terceira Onda, é essencial de ser compreendida para podermos avaliar os impactos que a tecnologia pode ter. Como o próprio Toffler afirma, essas ondas podem estar ocorrendo simultaneamente, em locais e sociedades diferentes, e é o que pode se constatar neste caso específico, onde discutimos uma tecnologia (um aplicativo para celular) que monitora trabalho escravo, duas coisas aparentemente anacrônicas, em um mesmo momento histórico.

Alguns autores utilizam os conceitos de Sociedade Industrial e Sociedade do Conhecimento, conceitos que não serão aprofundados aqui, devido ser possível traçar um paralelo desses conceitos com o que seria equivalente à Segunda e Terceira Onda. Mas mesmo autores que utilizam esses ou outros conceitos, acabam abordando esse anacronismo simultâneo, que ocorre com maior intensidade nos chamados países periféricos.

Essa característica é mais gritante em países periféricos devido à balança de poder econômico mundial, é um movimento intrínseco ao capitalismo, coerente com a tendência de concentração de renda. As sociedades detentoras de maior poder econômico, estão em sua maioria, pautadas em democracias, onde a pressão exercida por este sistema empurra as práticas mais selvagens de obtenção de lucro para os países periféricos. A velha discussão sobre as grandes corporações, as maquiladoras, a mão-de-obra barata, e o exército de reserva de trabalhadores, seria útil para esta abordagem, mas fora do escopo deste texto.

Basta dizer que, é compreensível, uma sociedade pautada em uma suposta democracia, com substancial poder econômico, não querer ver 'sujeira no seu quintal'. E algo que é inerente ao modo de produção capitalista, deslocar-se para as economias periféricas, onde o 'culpado' é o próprio ser humano dessa sociedade periférica bárbara e atrasada.

Nossa própria sociedade periférica bárbara e atrasada, 'terceiriza' os seres humanos bárbaros e atrasados: os escravos são 'pobres ignorantes' do nordeste, 'preguiçosos' bolivianos que não tomam banho, e vejam só, até mesmo os escravagistas são oportunistas coreanos.

O trabalho escravo é uma realidade brasileira, anacrônica (?) e atual. O ponto de interrogação anterior é uma reflexão sobre se realmente nos livramos do escravagismo na história brasileira. Políticos já foram investigados por trabalho escravo, empreiteiras, enfim, diversos segmentos da sociedade. Trabalho escravo que não ocorre apenas nos rincões, mas nas próprias metrópoles, debaixo dos nossos narizes empinados pela ignorância, insensibilidade ou credulidade no sistema vigente em que nossa sociedade é pautada.

Diante do impacto que é causado pela própria sociedade, do 'homem sendo lobo do homem', como é possível questionar o impacto desta tecnologia em específico? Pode-se considerar um esforço patético, criar um aplicativo para monitorar empresas de roupas? Sim. Mas a somatória de esforços patéticos, é o que resta a uma sociedade onde há um descolamento entre os segmentos populares e seus representantes na democracia (como é bem demonstrado no vídeo "A história das coisas"). Dessa somatória pode surgir algo no futuro (futuro/presente, já que estamos no meio de uma onda de ruptura) que se apresente como alternativa a um sistema controlado pelo lucro dos poucos que concentram a renda.

Neste ponto é necessário abordar um aspecto da cultura da nossa espécie: o ser humano é um ser gregário. Não há ser humano, sem sociedade. Isto está inserido no próprio conceito de cultura de Cristina Costa: uma certa ruptura com os instintos naturais, que permitiu o desenvolvimento de simbolismos, significações, inventividade e linguagem. Essa evolução de condição de animal natural, com reações baseadas no código genético, para uma espécie com reações mais complexas, essencialmente influenciadas pela sociedade.

É engraçado pensar que uma das principais características responsáveis por nossa evolução, o viver em sociedade, acabe criando uma sociedade baseada no individualismo, sendo que, ninguém é humano sozinho.

Parte intrínseca de nossa cultura é a tecnologia, desde a criação de técnicas, sua separação da filosofia e da arte, até a própria sistematização da ciência da técnica. Para muitos, nossa nova religião, aquela que salvará a humanidade. Que haverá capacidade para isso, parece cada vez mais inquestionável, resta a pergunta: Ela servirá aos individualistas que controlam a sociedade, e consideram nossa característica gregária de forma eugenista, ou servirá aos que vêem nossa característica gregária como o que realmente somos: dependentes uns dos outros?

Dessa resposta obtemos quais serão os impactos da tecnologia na sociedade. Hoje, em nossa sociedade brasileira, os impactos são fragmentados, paliativos ou danosos, conforme os ditames do capital internacional.

Enfim, ao analisar o fenômeno da Terceira Onda (ou mesmo um conceito paralelo como o de Sociedade do Conhecimento), têm-se a tecnologia com um peso importantíssimo nas dinâmicas sociais, mas essas mesmas dinâmicas sociais são indissociáveis do conceito de cultura, e da característica gregária da espécie humana. O que resta de barreira para que uma sociedade onde tecnologia seja voltada para essa dependência entre seres humanos, é justamente o sistema de produção comum ainda à Terceira Onda e à nossa cultura atual: o capitalismo focado no consumo e no individualismo. Se a Terceira Onda vai superá-lo, e alterar assim, radicalmente a nossa cultura, podemos esperar impactos melhores da tecnologia do que se o contrário acontecer, e o capitalismo continuar no cerne de ambas as coisas.

Bibliografia:

COSTA, Cristina. Introdução à ciência da sociedade. São Paulo, Ed. Moderna, 2010. Pg. 182 a 186.

TOFFLER, Alvin e Heidi. Criando uma nova civilização: a política da terceira onda. 6 ed. Rio de Janeiro, Ed. Record, 1999. Pg. 19 a 29.

A história das coisas. Vídeo acessado em: https://www.youtube.com/watch?v=7qFiGMSnNjw&feature=youtu.be